O mentor do esquema de falsificação e venda de certificados de habilitação do 12.° ano na corporação de bombeiros de Camarate confessou, no Tribunal de Lisboa, esta quinta-feira, que o fez inicialmente em benefício próprio, para se poder candidatar a um emprego em Angola, e que depois vendeu documentos falsos a colegas, para fazer face a problemas financeiros devidos aos salários em atraso na corporação.
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"Não tinha dinheiro nem sequer para a sopa dos meus três filhos", justificou-se Pedro Silva, garantindo que cometeu os crimes apenas durante dois meses, de julho a agosto de 2014. O esquema de falsificação e venda de certificados durou entre 2014 e 2016 e, desde a saída de Pedro Silva, foi o casal de bombeiros Nuno Paredes e Zélia Oliveira, da mesma corporação, quem assumiu a venda de documentos falsificados a colegas.
Em tribunal, estes arguidos também confessaram os crimes, justificando-se igualmente com os ordenados em atraso e a necessidade de pagar contas. Contudo, negaram qualquer associação criminosa, crime pelo qual também estão acusados no processo, que conta com 59 arguidos.
Forjados no quartel
Pedro Silva, agora ex-bombeiro, disse que teve a ideia de fazer o certificado quando se candidatou a um emprego em Angola para o qual era exigido um certificado do 12.º ano. "Pesquisei na Internet um certificado, desenhei um carimbo à mão e fui a uma loja imprimi-lo para fazer para mim o certificado", relatou.
Este arguido está atualmente no País de Gales e, através de videoconferência, disse que vendeu certificados a dez colegas da corporação, a troco de 50 euros cada. "Fazia isto no computador da corporação e toda a gente via. Assim, pediam-me que fizesse para eles", referiu Pedro Silva, acrescentando que também fez um certificado ao atual comandante da corporação, Luís Martins, a pedido do próprio, quando este era ainda coordenador do serviço, mas que não lhe cobrou nada.
Na anterior sessão de julgamento, o atual comandante, também arguido, negou ter feito qualquer pedido a quem quer que fosse para ter certificado e que, quando o teve na sua secretária, até o rasgou.
Casal herda negócio
Quando partiu para Angola, Pedro Silva entregou o carimbo e os documentos para fazer certificados ao amigo Nuno Paredes, que, em conjunto com a companheira Zélia Oliveira, prosseguiram com o esquema até 2016 e são tidos pelo MP como líderes desta associação criminosa. "Entreguei porque era meu amigo e sabia que passava por dificuldades devido aos salários em atraso", disse Pedro Silva.
Nuno Paredes confirmou ter herdado o "negócio" de Pedro Silva em 2014, quando este foi para Angola, e invocou as dificuldades financeiras. "Recebia o ordenado mínimo e havia grandes dificuldades de pagamento [por parte da corporação], recebia 120 euros no início do mês e o resto era ao longo do mês. Assim, vi neste negócio uma forma de pagar as contas da água, luz, renda", justificou-se Nuno Paredes. "Eu continuei o negócio, e a minha companheira, a Zélia, assinava os certificados, mas a meu pedido. Fui eu que lhe pedi para fazer isso".
Em tribunal, Zélia Oliveira confirmou que assinava os certificados com o nome da chefe de Serviços do Externato São José - Agrupamento de Escolas de Sacavém, instituição cujo nome constava nos documentos falsos. "Tinha rendas em atraso e aderi a este negócio para garantir comida na mesa", alegou Zélia Oliveira.
Várias corporações afetadas
Os principais arguidos contavam com outros intermediários que, de acordo com o MP, angariavam clientes em várias corporações. Estão a ser julgados, no total, 59 arguidos. Ainda assim, Nuno Paredes e Zélia Oliveira refutaram a tese de que se tratava de um grupo criminoso, associado com o fim de vender certificados.
Nuno Paredes disse que havia um passa-palavra entre bombeiros e que lhe chegavam por mensagens com os nomes para emissão de certificados. Referiu também que o esquema já existia antes.
"Cobrava cem euros por certificado. Ao Mário Pessoa, por ser meu amigo e colega na corporação, cobrava menos, 60 euros, para que ele pudesse ganhar mais um pouco, tendo em conta que também tinha salários em atraso", contou ainda Nuno Paredes.
Segundo a acusação, os arguidos tidos como intermediários cobravam entre os 150 e 200 euros. Ficavam com parte do valor e entregavam o restante a Nuno Paredes.
Chico-espertismo
A venda de certificados alastrou-se pelas corporações de Carnaxide, Zambujal e São Martinho do Porto.
Nesta última, o arguido Sário Antunes servia como intermediário, cobrando 200 a 250 euros por cada certificado. Em tribunal, disse que tomou conhecimento do esquema através de outro intermediário, Jorge Cartaxo, de Carnaxide. "O valor que me davam era para pagar a gasolina, visto que ia a Lisboa buscar os certificados, e para pagar o que me pediam pelos certificados", afirmou.
Sário Antunes explicou que não angariava clientes, mas as conversas passavam de boca em boca no quartel. "Eu próprio pedi um certificado para me candidatar aos bombeiros do aeroporto, o que acabou por não acontecer".
Em julgamento, vários bombeiros de São Martinho do Porto confessaram ter pago entre 200 e 250 euros a Sário Antunes para ter o certificado. Nenhum admitiu utilizá-lo para concorrer a funções que exigissem o 12° ano, o que causou estranheza na juíza-presidente que conduz o julgamento. "Os senhores não ganham uma fortuna e dizem que pagaram mais de 200 euros por um documento que não usaram. Enfim...", desabafou a juíza.
Os bombeiros de São Martinho do Porto que compraram os certificados e testemunharam esta quinta-feira em tribunal classificaram os seus atos como "parvoíce", "chico-espertismo", uma "borrada muito grande", ou "ideia sem nexo". Todos demonstraram arrependimento e "vergonha".