Professora de 61 anos foi morta à facada pelo companheiro, na Madeira, em 2016. Relatório revela que denúncias às autoridades de nada valeram.
Corpo do artigo
Ao longo de 16 anos, a PSP, a Segurança Social e a Comissão de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ) de Porto Santo, na Madeira, receberam 14 denúncias relativas a maus tratos, agressões e ameaças de morte feitas por um desempregado à companheira e sua família. Destas, 12 foram arquivadas, uma foi suspensa provisoriamente e outra resultou numa condenação, três meses após Maria Madalena Teixeira ter sido degolada.
12901069
Para a Equipa de Análise Retrospetiva de Homicídios em Violência Doméstica (EARHVD), as autoridades mostraram "condescendência para com o comportamento" do agressor e "falta de proatividade na investigação criminal". Isto, mais a "inconsequência da ação judiciária", resultou na falta de proteção à professora e no fortalecimento do "sentimento de impunidade" do homicida.
Maria Madalena Teixeira iniciou um relacionamento amoroso com Jorge em 2005 e, pouco depois, começaram as agressões. Consumidor de drogas e álcool, o desempregado iniciou-se pelas ameaças de morte, mas rapidamente passou às agressões. Não só à companheira, como também às filhas e neto desta. Os maus tratos aconteceram, na maioria das ocasiões, no interior da habitação da família, mas também na rua e na escola onde a professora do ensino especial lecionava. Ainda em 2007, a subdiretora do estabelecimento de ensino apresentou queixa, após Jorge ter entrado na escola e empurrado Maria Madalena contra um vidro da sala de aula, partindo-o. Os factos foram presenciados por várias crianças, que ficaram assustadas. Os vizinhos também denunciaram as agressões e o mesmo fizeram os responsáveis do centro de saúde onde a vítima chegou a receber tratamento às lesões provocadas pelas chapadas, murros e puxões de cabelo. Ao todo, contou a EARHVD, foram feitas 14 queixas, incluindo a que foi investigada pela CPCJ, que arquivaria o processo relacionado com o neto da vítima. A viver com a avó, a criança foi várias vezes agredida e ameaçada de morte.
Vítima desistia das queixas
Arquivadas foram, igualmente, quase todas as restantes denúncias. O silêncio dos intervenientes ou a desistência de queixa por parte da professora tornava, na perspetiva do Ministério Público (MP), "a prova recolhida frágil e escassa". Aliás, só um dos episódios violentos chegou a julgamento, mas quando Jorge foi condenado a dois anos e cinco meses de prisão já tinha assassinado a companheira.
Tudo aconteceu em janeiro de 2016, após mais uma queixa de Maria Madalena à PSP. O companheiro viu-a a sair da esquadra, esperou por ela em casa, agarrou-a pelo cabelo e desferiu-lhe diversos socos na boca. O neto ouviu os pedidos de socorro e saltou pela janela do quarto para ir pedir ajuda ao café mais próximo. Quando regressou com um vizinho, Jorge apareceu à porta de casa com Maria Madalena presa pelo pescoço. De seguida, deu-lhe diversas facadas, uma das quais, fatal, no pescoço.
"A proteção social da vítima tem de ser uma preocupação sempre presente na atuação dos órgãos de polícia criminal, do MP e dos tribunais. Este é um elemento que caracteriza o perfil da ação a desenvolver no combate a esta criminalidade. No caso em análise, essa proteção não foi conseguida e o agressor foi fortalecendo, no decurso do tempo, o seu sentimento de impunidade", defende a EARHVD.
Condenado a 20 anos de prisão
O assassino de Maria Madalena Teixeira foi condenado a 20 anos de prisão e ao pagamento de uma indemnização de quase 138 mil euros à família da professora. O julgamento decorreu no final de 2016 e os juízes consideram o arguido culpado do crime de homicídio. Mais tarde, o tribunal juntou os dois anos e cinco meses a que Jorge tinha sido condenado por violência doméstica e, em cúmulo jurídico, ficou a pena em 21 anos de prisão.
Antes destas condenações, o assassino chegou a estar proibido pelo tribunal de se aproximar da vítima e da sua residência. Contudo, as medidas de coação extinguiram-se, por duração máxima do tempo previsto na lei, sem que Maria Madalena Teixeira tivesse sido avisada. A partir daí voltaram as agressões.
Frases fortes do relatório da EARHVD
"Nas intervenções ocorridas nos anos de 2006 e 2007, evidencia-se uma clara condescendência para com o comportamento de B [homicida]. A importância e a razão de ser da natureza pública deste crime de maus tratos (inequívoca desde o ano de 2000) ainda não estavam suficientemente sedimentadas na prática judiciária, optando-se não raramente, como aqui aconteceu, por outras qualificações jurídico-penais dos factos que permitiam o termo dos processos por desistência da queixa, revelando incompreensão da evolução legislativa e do ciclo da violência doméstica"
No caso em análise, ficam sérias dúvidas sobre a qualificação jurídico-penal dos maus tratos de que A [Maria Madalena Teixeira] foi vítima e que permitiu o arquivamento de alguns inquéritos por desistência da queixa, assim como a solidez da verificação do caráter livre e esclarecido do pedido da vítima para aplicação da suspensão provisória do processo no inquérito, que correu termos no ano de 2009. A não suficiente consideração da necessidade de assegurar a devida proteção à vítima também é manifesta na não comunicação a esta da extinção da medida de coação de afastamento aplicada a B no ano de 2015 [obrigação que resultava já de uma adequada interpretação do artigo 15.º da LVD, mas que hoje consta expressamente no artigo 11.º n.º 9 do Estatuto da Vítima em processo penal, tendo a Diretiva n.º 5/2018-PGR, sobre violência doméstica]"
"A ação judiciária foi inconsequente, o que agrava o sentimento de insegurança e faz a vítima recuar na vontade de agir para se libertar do medo por que está dominada, reforçando o sentimento de impunidade do agressor"
"No presente caso, a intervenção desencadeada após as denúncias criminais não foi assertiva. O contacto com a equipa da Segurança Social foi ocasional, numa fase em que A e B se encontravam geograficamente afastados (e assim ficaram durante cerca de 4 anos), tendo-lhe sido apresentada a proposta de abandonar a sua casa e local de residência, onde o agressor continuaria a viver (proposta que, segundo informação do irmão, a PSP já lhe havia feito), o que poderá ter confirmado a A o sentimento de desproteção. Só mais tarde, em 2015, é aplicada a B, num inquérito então instaurado, a medida de coação de afastamento da residência e de proibição de contactos com A, mas o MP deixou-a extinguir pelo decurso do tempo e sem que isso tenha sido comunicado à vítima, que se viu surpreendida com a presença e novas agressões de B, o que terá decerto agravado a sua convicção de que estava desprotegida, optando por definir a sua própria, mal sucedida, estratégia de "gestão do risco".
"A ação desenvolvida para proteção de C [neto da vítima] foi pouco esclarecida e inconsequente, tendo esta criança sofrido e vivenciado durante pelo menos 6 anos, entre os 3 e os 13 anos de idade, a contínua e crescente violência no seu agregado familiar sem que tivessem sido tomadas medidas efetivas para preservação da sua segurança e das condições de um desenvolvimento saudável"