Chegaram ao Aeroporto Humberto Delgado, em Lisboa, como pai e filha. Vindos num voo proveniente do Gana, tinham como destino final a Alemanha, país onde o homem residia há mais tempo do que a idade da criança.
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O pormenor levantou dúvidas aos inspetores do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), mas os dois imigrantes garantiam - e os documentos assim mostravam - que eram uma família unida, que procurava nova vida em comum na Europa. Quando a pressão dos inspetores se intensificou, a menina passou a ser enteada do traficante de pessoas e depois transformou-se em filha de uma amiga. No final, ambos acabaram por confessar que não se conheciam antes de entrar no avião e que pretendiam somente chegar à Alemanha, onde a menor seria entregue a uma família de imigrantes ganeses.
Este foi um dos casos sinalizados pelo SEF, órgão de polícia criminal que acredita que a criança seria sujeita a um processo de adoção ilegal e utilizada na obtenção de subsídios atribuídos pelo Estado alemão. Uma prática recorrente, que leva a que redes internacionais recrutem menores em países da África subsariana e da Ásia para os explorar, sobretudo, nos países mais ricos da Europa.
Portugal raramente é escolha para destino final, mas, devido ao aumento das ligações aéreas com Angola, Guiné-Bissau, Nigéria, Congo, Uganda ou Mali, tornou-se numa porta giratória para imigrantes ilegais, que procuram chegar a França, Alemanha, Bélgica, Holanda, Noruega e Suécia, onde a vitalidade económica e as políticas internas fazem crescer os valores dos apoios sociais. "As pessoas também procuram países onde há comunidades bem instaladas e da mesma nacionalidade", explica fonte do SEF.
Exigidas políticas comuns
O mais recente Relatório Anual de Segurança Interna (RASI), publicado no mês passado, revela que "30 menores foram identificados como presumíveis vítimas" de tráfico de seres humanos nas fronteiras nacionais e que houve ainda quatro casos de meninas "identificadas no estrangeiro para fins de adoção ilegal". E deixa o alerta: "o tráfico de menores para adoção e para exploração sexual e laboral nas fronteiras aéreas foi identificado como um fenómeno a exigir controlo".
Os 94 processos-crime instaurados em 2018, que deram origem a 34 arguidos e 21 detidos, e os 45 menores sinalizados em 2017 "como (presumíveis) vítimas de tráfico em Portugal", pelo Observatório do Tráfico de Seres Humanos, revelam a dimensão de um problema que as autoridades não sabem se está em fase ascendente. "Se há mais voos, mais passageiros e mais pessoas controladas é normal que haja mais detenções", explica a fonte do SEF.
O fenómeno está sob escrutínio e vigilância constantes na Europol e que é a esta plataforma que as autoridades policiais recorrem para obter e trocar informações sobre tráfico de seres humanos. Em vários casos, esta cooperação permitiu descobrir casos em que a mesma criança está registada no sistema de segurança social de diferentes países, beneficiando de apoios financeiros de vários estados em simultâneo.
Contudo, refere a fonte, para um combate eficaz ao tráfico de seres humanos, seria necessário maior empenho dos governos europeus, através da implementação de uma política comum de atribuição de vistos e subsídios e para a gestão do fluxo migratório, que permita detetar de imediato qualquer fraude, designadamente a duplicação de subsídios. Por exemplo, através da criação de uma base de dados de acesso comum.
"Os passadores de crianças nunca trabalham sozinhos. Têm contactos nos países de origem, de trânsito e de destino dos menores. Há sempre alguém que dá uma ajuda, que cede um lugar para dormir, a alimentação e que compra o bilhete de autocarro para que a viagem prossiga", justifica ainda a fonte do SEF.
Os números do tráfico
46 arguidos pelo crime de tráfico de seres humanos. O número foi registado nos anos de 2017 e 2018
30 menores identificados como presumíveis vítimas de tráfico de seres humanos em 2018. São menos do que em 2017
54 investigações de tráfico de seres humanos a cargo do SEF, em 2018. Destas, 14 foram concluídas, 11 com acusação.
350 menores fiscalizados na operação Bambini, levada a cabo pelo SEF, entre 25 e 31 de março. Todas as crianças viajaram em voos de Angola
Indícios de tráfico
Medo da escada rolante - Viajantes que nunca viram uma escada rolante e que mostram relutância em usá-la chamam a atenção dos inspetores do SEF.
Roupa nova com tamanho errado - Imigrantes que usam sapatos e roupa nova, mas dois ou três números abaixo ou acima do seu número, também são considerados suspeitos.
Crianças sem bagagem - Malas apenas com roupa para um dos membros da alegada família é outro indício levado em conta pelas autoridades. Crianças viajam sem qualquer muda de roupa.