Dois oficiais e o diretor do Núcleo de Deontologia e Disciplina (NDD) da PSP do Porto, Roma Filipe, são suspeitos de terem mentido em tribunal. No julgamento em que dois subcomissários respondem pelos alegados crimes de falsificação do auto de notícia sobre a morte de um jovem assaltante, no Porto, em 2016, o Ministério Público (MP) requereu a extração de certidões dos depoimentos daquelas três testemunhas, para avançar com procedimento criminal contra as mesmas.
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O advogado Lourenço Pinto, que defende os dois subcomissários arguidos, também anunciou queixas contra um chefe da PSP e contra um perito da Polícia Judiciária, mas veio a desistir da intenção.
No Tribunal do Bolhão, no Porto, os subcomissários Jean Carvalho e Rui Dias estão acusados de terem falsificado o auto de notícia que relata a morte de André Gomes, que tinha 16 anos e, na noite de 30 de agosto de 2016, teria participado num assalto.
Na Rua das Águas Férreas de Campanhã, no Porto, o adolescente em fuga foi alvo de dois tiros e, segundo o MP, os subcomissários "quiseram deturpar a verdade", com o objetivo de "desresponsabilizar o agente Rui Lourenço", autor dos disparos.
Desde março que vários polícias têm tentado explicar os momentos seguintes aos disparos, mas as versões apresentadas divergem. Uns garantiram que os subcomissários escreveram o auto de notícia com as informações transmitidas pelos agentes Rui Lourenço e Nuno Ferreira, outros asseguram que estes dois, logo após a morte do jovem, não tinham condições psicológicas para dizer o que quer que fosse.
Em contradição
Alguns deles, segundo a procuradora Teresa Morais e o advogado de defesa Lourenço Pinto, efetuaram igualmente depoimentos contraditórios com as declarações prestadas anteriormente na Inspeção-Geral da Administração Interna (IGAI) e na fase de inquérito do processo judicial.
Foi o caso do subintendente Manuel Alberto Fernandes, apontou a representante do MP, que requereu ao tribunal que extraísse certidão para instauração de procedimento criminal por falsas declarações.
O advogado dos subcomissários classificou o requerimento de "incompreensível e em total desacordo com as regras de imparcialidade".
Sucederam-se pedidos semelhantes, um deles visando o diretor do NDD. Roma Filipe mentiu em tribunal quando afirmou que a investigação interna (ainda em curso) aos agentes envolvidos nos disparos se justificou por falsas declarações prestadas pelos mesmos nos processos disciplinares instaurados aos subcomissários, sustentou a procuradora. Antes, na instrução do processo judicial em curso, o diretor do NDD tinha dito que as falsas declarações foram feitas na IGAI.
Roma Filipe terá alterado o testemunho, defendeu a magistrada, para "afastar a questão da extemporaneidade de tal processo" disciplinar aos agentes.
Relatou o que não ouviu
Em audiência de julgamento, Teresa Morais requereu ainda a extração de certidão por falsas declarações do subintendente João Afonso. Este oficial declarou que o agente Nuno Ferreira lhe contou o que tinha acontecido na noite de 30 de agosto de 2016, nomeadamente os dois disparos alegadamente feitos para o ar feitos por Rui Lourenço. Contudo, realça Teresa Morais, "este agente em momento algum, em processo algum, em inquirição alguma, mencionou tais factos".
Advogado desiste de certidões e acusa MP de querer "amedrontar"
O advogado dos subcomissários que estão a ser julgados por falsificação, Lourenço Pinto, manifestou intenção de processar o chefe José Pinto, como também requereu a extração de certidão das declarações do perito da PJ Vítor Teixeira, para apresentar uma queixa-crime contra este. Para Lourenço Pinto, o depoimento do perito da PJ pôs em causa a honra e o bom nome de outro perito, por si arrolado, e dos arguidos Jean Carvalho e Rui Dias. Contudo, no dia seguinte, Lourenço Pinto informou a juíza Amélia Clemente Okai de que, "após ouvir os seus clientes e testemunhas", desistia de todos os requerimentos de certidões. Sobre as certidões requeridas pelo Ministério Público, o advogado comentou que este, "perante a prova trazida aos autos, desfavorável à sua tese, tenta confundir, amedrontar e, de certo modo, divagar". Sustentou, ainda, que as declarações do diretor do Núcleo de Deontologia e Disciplina da PSP do Porto, Roma Filipe, foram "isentas, claras e causaram alguma perturbação no MP e na sua tese".
Ação disciplinar visa apenas os dois agentes
O auto de notícia a descrever a morte do jovem assaltante foi assinado pelos agentes Rui Lourenço e Nuno Ferreira, mas, perante as desconfianças do Ministério Público (MP), os subcomissários Jean Carvalho e Rui Dias acabaram por admitir a autoria do documento. Mas garantiram que só verteram para o auto o que lhes fora relatado pelos agentes Lourenço e Ferreira.
Estes também começaram por assegurar que tinham sido eles a elaborar o auto, mas, ao longo do inquérito, admitiram a mentira. "Foram os subcomissários que decidiram o que escrever", confessou Nuno Ferreira. O outro disse então que não tivera "qualquer participação na elaboração do auto", nem se revia "no respetivo conteúdo". Explicaram ambos que assinaram um auto falso por "um sentimento de medo em relação aos oficiais".
Versões distintas apresentaram, também, o comissário Manuel Fernandes e o subintendente Adrião Silva. Este oficial afirmou à IGAI e ao MP que Rui Lourenço "lhe referiu ter efetuado dois disparos para o ar", mas, no decorrer do inquérito, admitiu que foram os subcomissários a optar por tal descrição.
Apesar de todas as referidas retratações, o Núcleo de Deontologia e Disciplina da PSP do Porto só instaurou processos disciplinares por falsas declarações aos agentes Lourenço e Ferreira, deixando de fora os oficiais. Para o MP, esta opção insere-se numa estratégia de "constrangimento" dos agentes.
Roubo de tabaco
Às 3.20 horas de 30 de agosto de 2016, quatro jovens roubaram uma máquina de tabaco, num café de Gondomar. Em seguida, dirigiram-se à rua das Águas Férreas, em Campanhã, e retiraram 178 maços de tabaco e 210 euros do interior da máquina.
Fuga para a morte
Quando se preparavam para abandonar a Rua das Águas Férreas, os jovens delinquentes foram surpreendidos por um carro-patrulha da PSP. Não se detiveram e abalroaram a viatura policial, que lhes barrava o caminho. Foi nesse momento que o agente Rui Lourenço deu três tiros em direção aos fugitivos. Dois deles mataram André Gomes.