Lucros da "TV 7 Dias", "Maria" e "Nova Gente" foram para offshores, mas trabalhadores e Estado ficaram a arder. PJ detém quatro por falência dolosa e corrupção.
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O patrão do grupo de comunicação Impala, Jacques Rodrigues, foi detido ontem no âmbito da operação policial "Última Edição", por suspeita de ter desviado cerca de 68 milhões de euros da empresa Descobrirpress, correspondentes a receitas das revistas "Nova Gente", "Maria" e "Nova Gente", em prejuízo de diversos credores. No esquema sob investigação da Polícia Judiciária, que ontem fez 32 buscas e deteve também um filho de Jacques Rodrigues, um advogado e um revisor oficial de contas, aqueles milhões terão sido canalizados para contas pessoais dos suspeitos, nomeadamente em paraísos fiscais.
A investigação foi aberta em 2021 para apurar suspeitas de corrupção ativa e passiva que envolviam Jacques Rodrigues e um administrador judicial que acompanhou vários planos especiais de revitalização (PER) da Descobrirpress. Posteriormente, os investigadores depararam-se com uma teia de empresas que teria sido montada para descapitalizar a Descobrirpress e transferir os lucros das revistas cor-de-rosa para a esfera patrimonial do patrão do Grupo Impala. Além de conduzir a Descobrirpress-Serviços Editoriais e Gráficos, SA, à insolvência, em 4 de outubro de 2022, tal plano levou o Grupo Impala a acumular dívidas de cerca de 100 milhões de euros a trabalhadores, a fornecedores e ao Estado português.
A PJ e o Ministério Público investigam não só eventuais crimes de corrupção, como de insolvência dolosa agravada, burla qualificada e fraude fiscal.
Credores manipulados
Para recolher provas, mais de 100 elementos da PJ fizeram ontem buscas em Lisboa, Sintra, Cascais, Oeiras, Amadora, Santo Tirso, Porto, Matosinhos e Funchal. Segundo informou em comunicado, a PJ fez seis das buscas em empresas de comunicação social, quatro em gabinetes de revisores oficiais de contas e uma no escritório de um advogado. Também houve buscas domiciliárias, uma delas numa mansão de Jacques Gil Rodrigues na Quinta da Marinha, em Cascais, onde o empresário de 83 anos foi detido.
Os outros detidos foram o seu filho mais novo, Jacques Júnior, o advogado Natalino Vasconcelos, com escritório em Sintra, e o revisor oficial de contas José Luís Rito, de Lisboa. Dez suspeitos foram apenas constituídos arguidos, esclareceu ainda a PJ, que deverá levar hoje os detidos a um juiz de instrução, para interrogatório e aplicação de medidas de coação. Sob a liderança de Jacques Rodrigues, os suspeitos executaram o plano de descapitalização da Descobrirpress na última década, período durante o qual apresentaram, pelo menos, três PER, para escapar à declaração de insolvência da empresa. Para que o tribunal aprovasse os PER, os suspeitos, designadamente familiares de Jacques Rodrigues e colaboradores do grupo Impala, terão manipulado credores com direito de voto, utilizando uma empresa, a Sogapal, que simulou a compra da Descobrirpress. Esta é assim tida pelos investigadores como veículo dos crimes e ela própria a principal lesada, tal como os trabalhadores, os fornecedores e o Estado.
Com efeito, a Descobrirpress suportava os custos de produção dos conteúdos editoriais, mas transferia para outras empresas do grupo grande parte dos lucros das revistas, antes de os mesmos serem canalizados para os suspeitos.
Também houve casos em que a contabilidade de empresas do grupo lhes imputou dívidas para com a Descobrirpress que, depois, eram convertidas em capital social daquelas firmas, com um valor muito acima da realidade.
"Metam isto nas vossas cabecinhas"
O caráter "truculento" de Jacques Rodrigues mostrou-se em direto, no Canal Parlamento, em 2021, quando foi ouvido na Comissão do Trabalho e da Segurança Social sobre atrasos nos salários de 174 trabalhadores há dez anos e o despedimento coletivo de mais 200. "A Descobrirpress é acusada de despedir, como se fosse a única na Comunicação Social a fazê-lo, em Portugal e no Mundo. Aconselho os senhores deputados a consultarem, se a conhecem, a APCT [Associação Portuguesa para o Controlo de Tiragem e Circulação] para melhor identificarem a crise existente nos meios de Comunicação Social. Os senhores insistem em falar do representante dos trabalhadores do grupo Impala mas, metam isto nas vossas cabecinhas, é dos trabalhadores da Descobrirpress", disse Jacques Rodrigues.
Perfil
Um mau feitio com milhões de leitoras
Jacques Rodrigues é, a par de Francisco Pinto Balsemão, um decano dos média portugueses. Do Grupo Impala saíram títulos como a "Nova Gente", "VIP", "Maria", "TV 7 Dias", "Mulher Moderna" ou a já extinta revista "Focus". Para se perceber o impacto destas publicações, diga-se que, na década de 90 do século passado, as mesmas seriam lidas, semanalmente, por mais de dois milhões de pessoas, na grande maioria mulheres.
Isso mesmo permitiu a Jacques Rodrigues ter estofo financeiro para estabelecer residência na exclusiva Quinta da Marinha, em Cascais, onde é vizinho de Pinto Balsemão, ou para ser um dos fundadores da SIC, com 6,75% do capital.
Jacques Rodrigues estudou na Casa Pia, em Lisboa, tendo cumprido apenas quatro anos de escolaridade, e iniciou a vida profissional como tipógrafo.
Nos anos 70, em Angola, foi paginador e editor de revistas que iam da banda desenhada à pornografia, da música às fotonovelas e ao futebol.
Com um percurso invulgar e recheado de polémicas, é conhecido por atuais e antigos funcionários do Grupo Impala como um homem irascível, dado a ataques de fúria.
Avesso à exposição pública, teve nove filhos, de quatro mulheres, uma extensa família que tem feito carreira profissional nas empresas do grupo.
Pode não conseguir pagar o que deve, pague pelo que fez
Ex-trabalhadores lesados em dezenas de milhares de euros concentraram-se ontem junto à sede do Grupo Impala, após a notícia da detenção de Jacques Rodrigues, com um sentimento misto de satisfação e revolta.
"Pode até não conseguir pagar o que nos deve, mas que pague pelo que fez", apela Luís Peniche, despedido em 2020. "Tenho ex-colegas que já morreram a quem desfez completamente as vidas e isso tem de ser pago de alguma forma".
Os ex-funcionários reclamam o pagamento de indemnizações por despedimento coletivo a que têm direito. "A minha ascendia a 72 mil euros, só recebi 11 mil do Fundo de Garantia Salarial", conta Peniche, jornalista do Impala por 37 anos, que engrossou o despedimento de 54 trabalhadores. Elisabete Guerreiro, que ali foi produtora de fotografia durante 17 anos, também foi apanhada pelo despedimento coletivo. "Saímos com a roupa que tínhamos no corpo, não recebemos nada. Devem-me mais de 4000 euros", diz.
Advogado tem dúvidas
Paulo Campos, advogado dos 54 trabalhadores despedidos, diz que "as indemnizações vão de 4000 a mais de 100 mil euros". O jurista acredita que a detenção do dono do Impala "vai acelerar o processo para se perceber se uma delapidação do património da empresa Descobrirpress (que entrou em insolvência) ficou escondida". "Se foi escondido património ou dinheiro, consequentemente haverá mais dinheiro para que estas pessoas sejam pagas", explicou. Ainda assim, disse ter dúvidas que o património a ser arrestado seja suficiente para pagar as dívidas às centenas de credores.