Notoriedade de ex-presidente do Boavista aproveitada sem o seu conhecimento para servir de "passaporte" contra fiscalização. Denunciante do Lava Jato que beneficiou de indulto de ex-líder do Estado brasileiro detida em hotel de luxo em Portugal.
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O ex-presidente do Boavista João Loureiro foi usado pelo amigo Rowles Magalhães Silva, um ex-agente de jogadores, para afastar suspeitas de um voo de jato privado que iria transportar quase 600 quilos de cocaína entre o Brasil e Portugal. O recurso a pessoas VIP para iludir as autoridades foi, aliás, um estratagema recorrente dos cartéis brasileiros.
A garantia foi dada, na terça-feira, pelo delegado da Polícia Federal brasileira, Aldair Gregório, numa conferência de imprensa que anunciou o fim de um dos cartéis que mais cocaína introduziram na Europa e que tinha numa posição de liderança Nelma Kodama, denunciante do esquema de corrupção de políticos brasileiros Lava Jato.
Nelma Kodama, 55 anos, foi detida, na terça-feira, num hotel de luxo de Lisboa. Segundo informações recolhidas pelo JN, a mulher que se livrou de uma pena de 18 anos de cadeia graças a um indulto concedido pelo antigo presidente do Brasil Michel Temer, deslocou-se a Portugal para organizar mais uma viagem semelhante à que, em fevereiro de 2021, iria transportar mais de meia tonelada de cocaína escondida na fuselagem de um jato privado.
Nesse voo viajaria João Loureiro, que chegou a prestar declarações às autoridades brasileiras. Todavia, na terça-feira, Aldair Gregório confirmou que o advogado portuense nada sabia sobre o narcotráfico. "O voo foi contratado especificamente para vir buscar droga ao Brasil. Mas também iria transportar passageiros e um era inocente. O executivo estava ali apenas para justificar a necessidade de um jato e para dar cobertura a um voo internacional", esclareceu.
Amigos nos negócios
O polícia acrescentou que a Operação Descobrimento levou à detenção de cinco traficantes, incluindo, segundo a imprensa brasileira, o próprio Rowles Magalhães Silva, surpreendido na sua casa em São Paulo.
Rowles Magalhães Silva aproximou-se de João Loureiro quando era empresário de um jogador contratado pelos axadrezados. Aquando da apreensão do jato carregado de droga, o ainda candidato ao Senado brasileiro emitiu um comunicado a admitir ser amigo do ex-líder boavisteiro e de ter "celebrado um contrato-promessa" para a aquisição da OMNI, empresa proprietária da aeronave que escondia a cocaína, através da Aristopreference, empresa comprada a João Loureiro.
Refutou, contudo, qualquer ligação ao narcotráfico e às pessoas que alugaram o jato. Porém, Aldair Gregório garante que "todos os que foram presos são lideranças" de uma organização, que o diretor da Unidade Nacional de Combate ao Tráfico de Estupefacientes da Polícia Judiciária, Artur Vaz, diz possuir "uma grande capacidade para traficar cocaína para a Europa".
Vaz nada mais adianta, mas o JN sabe que, em Portugal, o cartel contava com dois outros operacionais, igualmente brasileiros. Um está detido desde o último verão, após ter sido apanhado na posse de cocaína. Outro conseguiu escapar ao mandado de detenção que se tentou cumprir ontem.
Perfil
"Dama do Mercado" escapou a 18 anos de prisão
Nelma Kodama foi detida em 2014, num aeroporto brasileiro, quando tentava fugir para Itália, com 200 mil euros escondidos nas cuecas. Esteve presa até junho de 2016, por ter sido responsável pela "lavagem" de milhões de euros, provenientes de esquemas de corrupção e de outros crimes. Apelidada "Dama do Mercado", foi libertada quando concordou em ser uma das primeiras pessoas a denunciar o Lava Jato, esquema de corrupção que envolveu políticos brasileiros. O testemunho contra os corruptos valeu-lhe um indulto, assinado pelo então presidente Michel Temer, que a salvou de uma pena de 18 anos de prisão. Chegou a movimentar milhões de euros num só mês.
Perguntas
Como é que era feito o tráfico de cocaína entre o Brasil e Portugal?
O cartel brasileiro comprava a cocaína a fornecedores da Colômbia, Peru ou Bolívia e, em seguida, alugava um jato particular para fazer a droga chegar à Europa. A cocaína tanto podia ser transportada em malas, como estar escondida na fuselagem do avião.
Só a organização agora desmantelada usava este esquema?
Não. Segundo a Polícia Federal, casos houve em que vários cartéis partilharam as despesas relacionadas com o aluguer do jato privado. "A cocaína encontrada neste jato tinha várias logomarcas nos embrulhos, o que indicia que pertencia a diferentes organizações", explicou Aldair Gregório.
Qual foi o trajeto do Falcon apreendido?
O jato foi alugado em Portugal e aterrou em Salvador, no Brasil. Depois, foi a São Paulo carregar a droga e regressou a Salvador para se reabastecer de combustível suficiente para viajar até ao aeródromo de Tires, em Cascais.
Foi a primeira vez que a organização agora desmantelada alugou um jato para traficar cocaína?
Não. A Polícia Federal identificou "quatro ou cinco" voos suspeitos. Num deles, o jato até foi inspecionado pela Polícia Judiciária que, todavia, não encontrou qualquer tipo de droga na aeronave.
A empresa proprietária do jato estava envolvida no tráfico de cocaína?
A Polícia Federal não acredita nisso. Aldair Gregório afirmou que a OMNI Aviation Group, com sede em Porto Salvo, sempre exigiu o pagamento antes de permitir que o jato voasse para o Brasil. Aliás, o avião que chegou a estar apreendido já foi devolvido à empresa e encontra-se a voar. O piloto também não sabia de nada.