Ex-militar diz que comer ração de cão era "tradição" na Força Aérea. Juíza diz que "não é normal"
Um dos dez ex-militares da Força Aérea Portuguesa, acusados de praxes violentas alegadamente cometidas sobre dois soldados, na Base Aérea N.º 5, em Monte Real, Leiria, garantiu esta terça-feira que comer ração de cão das gamelas e beber líquidos dos bebedouros era uma “tradição” na Polícia Aérea.
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As declarações causaram grande admiração ao coletivo do Tribunal de São João Novo, no Porto, tendo uma das magistradas referido que não considerava “normal” tal situação. Uma outra juíza, militar, chegou a interromper o arguido para afirmar que a praxe na Força Aérea “é proibida” e que, enquanto oficial, nunca foi submetida a esses procedimentos.
Na primeira sessão do julgamento, apenas dois dos nove acusados quiseram prestar declarações. Um décimo, residente na Madeira, faltou por motivos de saúde.
Cristiano Silva, de 28 anos e agora distribuidor de profissão, foi o primeiro a falar. Referiu que conhecia os dois soldados “de vista”, mas rejeitou ter participado na elaboração de um "plano previamente delineado e acordado" para integrar os dois soldados que, segundo a acusação do Ministério Público (MP), os arguidos consideravam ter um nível de desempenho "abaixo do padrão".
O arguido afirmou ainda que a "praxe sempre existiu", mas assegurou que nunca foi muito adepto dessas práticas. “O senhor foi surpreendido com esta acusação?”, indagou a presidente do coletivo, Maria Isabel Teixeira, ao que o arguido respondeu afirmativamente.
Por fim, Cristiano Silva referiu que sempre foi avaliado positivamente na Força Aérea, até dela ser expulso em 2020, e que até recebeu uma menção honrosa.
Na mesma sessão, falou ainda o arguido Luís Oliveira, de 29 anos e agora militar da GNR. Este disse que tinha uma “boa relação” com a vítima António G. e que ficou surpreendido com as acusações do queixoso, que chegou a convidar para a sua festa de despedida da Força Aérea, por ir ingressar na Guarda.
Negou também ter ordenado àquele ofendido que subisse ao hangar dos F-16 de emergência e se aproximasse do depósito de hidrazina.
Os restantes sete arguidos optaram, para já, por não prestar declarações, mas admitem vir a fazê-lo mais à frente.
A primeira sessão de julgamento ficou também marcada pelas intervenções iniciais e finais do advogado do arguido Roberto Silva, Carlos Caneja Amorim, que voltou a pedir que se “decretasse o encerramento” do processo e a absolvição dos arguidos, alegando “nulidades insanáveis” da acusação do Ministério Público.
O causídico já havia tentado, sem sucesso, afastar este coletivo, que acusou de falta de imparcialidade, tal como o JN já havia noticiado.
O Ministério Público refere que os dez arguidos, então com a especialidade de Polícia Aérea, consideravam que os dois ofendidos, António G. e Alexander P., apresentavam um nível de desempenho "abaixo do padrão" e, como tal, deviam ser sujeitos a um "processo de integração/ensinamento".
Assim, refere a acusação da procuradora Ema Afonso, "entre maio de 2018 e até setembro de 2019, por várias vezes e em dias distintos, foi ordenado pelos arguidos aos ofendidos que comessem ração e líquidos para canídeos na presença de outros militares".
Por vezes, também tinham que apanhar com a boca a ração de cão que era espalhada em cima do balcão do bar da Esquadra de Proteção e Segurança. “Nestas ocasiões, também lhes era ordenado que rastejassem com o corpo na pista de obstáculos de canídeos”, garante o MP.
A investigação refere que, no período noturno, “os arguidos, por várias vezes, ordenaram aos ofendidos que entrassem numa gaiola de transporte de cães, colocada numa viatura de serviço”, sendo transportados pela periferia da base, em terreno “sinuoso e acidentado”.
Os dez ex-militares, já expulsos da instituição militar, também terão, ainda de acordo com a acusação, ordenado aos dois soldados que “ingerissem bebidas alcoólicas até que os mandassem parar” e privado as vítimas dos seus turnos de descanso, nas noites em que estas estavam de serviço à Porta de Armas.
Entre outros episódios, o Ministério Público refere que, algures durante o período dos factos, o arguido André Alves apontou a arma de serviço à cabeça de Alexander P., dizendo-lhe: “Quem iria sentir a sua falta se eu disparasse?”.
E que, noutra ocasião, o arguido Miguel Sequera chamou este ofendido e perguntou-lhe se queria fazer “uma festinha, mamar”, ao mesmo tempo que segurava o pénis na mão, o que Alexander P. respondeu que não.
A acusação diz também que o ofendido António G. chegou a dormir na casa de banho, "junto a uma sanita", e a ser algemado e fechado no interior do armário do quarto pelos arguidos.
O Ministério Público diz que, por causa da atuação dos arguidos, um dos ofendidos chegou "a tentar o suicídio", em julho de 2019, enquanto que o outro ex-soldado "simulou o furto de um cartão bancário de um camarada, com o seu conhecimento", com o intuito de ser expulso da Força Aérea e evitar o pagamento da indemnização obrigatória no caso de cessação do contrato por iniciativa própria.
Os dez arguidos respondem, em coautoria, por dois crimes de abuso de autoridade por ofensa à integridade física e dois crimes de abuso de autoridade por outras ofensas. Um deles está também a ser julgado por uso ilegítimo de arma.