Serviços clínicos da cadeia de Custóias e do Hospital Pedro Hispano detetaram entorse após jogo de basquetebol, mas paciente tinha arteriosclerose que forçou amputação de emergência.
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A Cadeia de Custóias e a Unidade Local de Saúde de Matosinhos (ULSM) vão pagar 50 mil euros a um ex-recluso que perdeu uma perna após uma queda num jogo de basquetebol. Entre os factos e a sentença final passaram-se 12 anos.
Em novembro de 2009, Tobias (nome fictício), de 28 anos, cumpria pena em Custóias por ilícitos ligados ao consumo e tráfico de droga. Operário da construção nas horas vagas, tinha atividade principal algures entre o consumo e pequeno tráfico, mas ainda arranjava tempo para algum desporto. Chegado à cadeia, começou a jogar basquetebol. Em má hora, diria mais tarde.
No dia 25 de novembro de 2009, Tobias caiu e magoou-se no tornozelo direito. Foi conduzido ao posto clínico do presídio, onde foi tratado a uma entorse, com gelo, spray e comprimidos para as dores. Se a princípio o tratamento teve algum efeito, com o correr dos dias mostrou-se ineficaz. As dores eram cada vez mais fortes.
Pedro Hispano fez raio-X
Tobias tanto se queixou que, 15 dias depois, a 9 de dezembro, foi levado ao serviço de urgências da ULSM, no hospital Pedro Hispano, onde foi radiografado. O médico não viu qualquer fratura óssea e reiterou o diagnóstico que os serviços clínicos da prisão tinham feito "a olho", sem raio-x: "Entorse do pé e tornozelo direito". Também prescreveu o mesmo tratamento que há duas semanas se mostrava ineficaz: analgésico, anti-inflamatório, gelo.
O recluso regressou à cadeia, mas as dores foram de mal a pior. Tanto que, no dia 15, foi de novo conduzido às urgências de Matosinhos. Nova radiografia e um diagnóstico ainda menos preciso: "Dor articular". Quem o assistiu decidiu manter o tratamento com analgésicos e gelo.
Quatro dias depois, a 19 de dezembro, porque as dores eram insuportáveis e já não sentia os dedos do pé, Tobias recusou-se a ir novamente à USLM, pedindo que o levassem antes ao Hospital de S. João.
Neste hospital central, foi-lhe diagnosticada uma "arteriosclerose de artérias nativas" e foi levado a correr para a Cirurgia Vascular, onde foi submetido a "tromboembolectomia" (retirada de um trombo nas artérias). Mas era tarde de mais. Pouco depois, Tobias voltou à sala de operações, de onde saiu incompleto: amputaram-lhe a perna direita, a poucos centímetros do joelho.
Não valorizaram queixas
Tobias nunca se conformou. Ninguém lhe tirava da cabeça que havia culpados: os serviços clínicos da cadeia e quem o tratara no Pedro Hispano. E processou, administrativamente, a unidade de saúde e a cadeia. Pedia 150 mil euros, a título de danos patrimoniais e não patrimoniais.
No Tribunal Administrativo e Fiscal (TAF) do Porto, deram-lhe razão, dando como provado que houve "falta" culposa (facto ilícito por omissão") dos profissionais que o atenderam, da segunda vez. O tribunal concluiu que houve tempo e oportunidade para aqueles realizarem outras diligências que poderiam ter permitido diagnosticar a arteriosclerose e evitar a amputação. "Deveriam" - dizem os juízes -, face às insistentes queixas e sinais que poderiam significar comprometimento neurovascular, ter procurado outras causas e não se conformarem com a suposta entorse.
Para o TAF, aqueles profissionais violaram, por omissão, as regras da profissão, insistindo que deveriam ter feito outras "diligências exigíveis in casu", ou seja, "procurar outra etiologia/confirmação da existência (ou não) de alterações vasculares no caso concreto, nomeadamente através de pesquisa dos pulsos do pé". E o tribunal não encontrou o menor indício de que aquilo tivesse sido feito.
Por isso, a cadeia e a USLM foram condenadas a pagar 50 mil euros, numa decisão confirmada, há dias, pelo Tribunal Central Administrativo Norte, para onde todos recorreram.