"Fusão de todas as polícias seria a solução certa", defende dirigente do Sindicato de Oficiais de Polícia
O comissário Bruno Pereira, vice-presidente do Sindicato Nacional de Oficiais de Polícia, defende que a extinção do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), atualmente em discussão, devia ser aproveitada para uma reforma profunda do modelo policial português. Uma reforma que, alega, aumentaria as competências da PSP em claro detrimento da Polícia Judiciária (PJ).
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Com a reforma do SEF em discussão devia-se repensar o modelo policial vigente?
Sem dúvida, pese embora este seja um objeto de discussão há mais de duas décadas. Defendemos uma reforma profunda da geometria em vigor, que assenta no modelo napoleónico dual, com duas forças policiais nacionais - uma de cariz civil e outra de natureza militar - mas que é um modelo dual impuro, por deter um serviço de polícia de investigação criminal, ou de natureza judiciária, independente das duas primeiras, que também têm poderes e intervenção ativa no plano da investigação criminal.
Do ponto de vista lógico e analítico, a fusão de todas as polícias seria a solução certa a adotar. Porém, a empreitada afigura-se mais difícil de materializar do que à primeira vista poderia parecer e isto tem que ver, desde logo, com a dificuldade de fundir estruturas, mecânicas e heurísticas muito distintivas. Este passo pode colocar-nos à beira do precipício, pois, por toda a Europa, houve vários casos de fusão entre corpos de polícia civil e militar que vieram a ruir antes mesmo de estarem edificados.
Como deveria evoluir, então, essa reforma?
O primeiro passo passaria por uma agregação cautelosa de todos os corpos de Polícia de cariz civil, fundidos no maior corpo de Polícia civil, a PSP. Há muito que a PSP extravasou o seu centro de gravidade, originariamente centrado na segurança pública, sendo hoje uma polícia de proximidade, de ordem pública, de trânsito, de investigação criminal, de informações, de operações especiais, de segurança aeroportuária, de armas e explosivos, de segurança privada e de cooperação policial internacional. Esta miscelânea é bem ilustrativa do formato multidimensional e integral que caracteriza esta Polícia, que detém, já hoje, competências e experiência acumuladas nas áreas de intervenção de outros corpos de Polícia, como a Polícia Judiciária (PJ) e SEF.
Neste novo modelo, como se organizaria a investigação criminal?
A (futura) Polícia Nacional teria plena capacidade para assumir todo o quadro de investigação criminal na sua área de competência (partilhada com a GNR num puro quadro policial dual), salvaguardando-se, à semelhança do modelo francês, alguns espaços de atuação exclusivos da primeira quanto a crimes que exigissem uma intervenção técnica de monta, nomeadamente crimes financeiros e informáticos.
Num modelo de Polícia única não se colocaria sequer esta questão, sendo os crimes investigados pelos departamentos e unidades de investigação criminal dessa Polícia. Veja-se o exemplo inglês, que é um país com quase seis vezes mais a população que Portugal.
O que justifica uma maior predominância da PSP nesse modelo?
A PSP é responsável por quase 60% de todas as investigações realizadas em Portugal (88.000 no ano de 2020) e apresenta uma forte componente de prevenção criminal, que permite às suas equipas agir sobre o crime, ou logo após o seu cometimento, ainda no plano das medidas cautelares e de polícia. Estas equipas, não raras vezes, permitem não só a sinalização, preservação e recolha de indícios probatórios, como conduzem, com elevada eficiência, à descoberta dos autores, garantindo, logo na origem, o sucesso da tramitação processual que se segue.
Para que se fique com uma noção do seu peso e expressão, a PSP tem mais de 2000 polícias exclusivamente afetos à investigação e prevenção criminal, e, em 2020, 69% da criminalidade violenta e grave (8650 crimes) teve lugar na sua área de responsabilidade. De entre 27637 inquéritos de violência doméstica, a PSP foi responsável por 16610, mais de 60%; tramitou cerca de 51000 cartas/pedidos precatórios, de entre 108000 registados em todo o país e cumpridos por todos os OPC; cumpriu 2201 buscas domiciliárias e 939 buscas não domiciliárias de entre um total de 7450 e 4904 realizadas por todos os OPC; realizou cerca de 9500 escutas de entre um total de quase 12000. Num total de 9524 detenções realizadas por todos os OPC, as equipas de investigação criminal da PSP asseguraram 6250 delas. Destas detenções resultou a aplicação de 651 prisões preventivas. Foi ainda responsável pela detenção de 1717 suspeitos, 59% do total nacional, de tráfico de estupefacientes e apreendeu cerca de 2500 armas, destacando-se 450 armas de fogo. A PSP foi ainda responsável por quase 15000 exames aos locais de crime, realizados por equipas forenses fortemente especializadas na recolha de vestígios e indícios, em todo o território.
Os agentes da PSP possuem, neste momento, competências para investigar crimes complexos, como os homicídios ou o tráfico internacional de droga?
A PSP está encarregada de grande parte das investigações de combate ao tráfico de droga realizadas em Portugal e assume a dianteira na neutralização do maior número de grupos e organizações criminosas, nacionais e transnacionais, que atuam em solo nacional, estabelecendo uma forte ponte de comunicação no quadro internacional com a nossa vizinha Espanha. Ainda esta semana, a PSP de Lisboa apreendeu 35 quilos de heroína, avaliada em mais de 17 milhões de euros, durante uma investigação.
No que aos homicídios diz respeito, a PSP é responsável, de forma imediata ou muitas vezes mediata, pela identificação, localização e mesmo detenção de parte destes autores, ficando uma pequena franja de autores desconhecidos fora deste plano.
A Lei de Organização da Investigação Criminal (LOIC) não incluía como crime reservado o homicídio praticado por autor conhecido, vindo, estranhamente e em contra corrente com a maior capacidade e sofisticação da PSP nesta área de atuação, a reservar, em exclusivo, aquando da reforma de 2008, a totalidade dos crimes de homicídio à PJ. Isto é algo que não se compreende e o mesmo acontece com os crimes sexuais.
Com o devido complemento técnico, a PSP terá iguais condições, e às vezes até maiores, de chegar aos autores destes crimes hediondos, dado ter uma capacidade de exploração de fontes e conhecimento das dinâmicas criminais instaladas.
Que papel ficaria reservado à PJ?
A PJ, enquanto OPC genérico, tal e qual a PSP e a GNR, deve definitivamente catapultar as suas nucleares apetências técnicas para a investigação de crimes que não contemplem uma dimensão de cenário, nomeadamente crimes económico-financeiros, cybercriminalidade, criminalidade praticada por titulares de cargos políticos e altos cargos públicos. Reagrupando-se os ativos da PJ, alocando-os em exclusivo a estes setores de criminalidade onde são, inequivocamente, mais valias, certamente que teríamos ganhos substanciais.
Os demais OPC ocupar-se-iam de tudo o que seja a criminalidade de cenário, conhecida como criminalidade de rua. Estão, pelas suas características, mais capacitados a dar uma resposta mais eficiente e com elevados níveis de qualidade e sucesso.
A atual LOIC permite a concretização do modelo que defende?
Esta lei não acautela, de modo algum, os interesses do sistema de justiça, por entronizar em si gavetas de reserva de investigação que não obedecem a critérios lógicos e, pior, em total e flagrante desconformidade com a realidade que se observa. Algumas delas, mesmo assim, já são investigadas por estes OPC, por delegação específica de competências por parte de quem detém a exclusividade da ação penal em Portugal. O legislador em vez de comprimir o universo que previu, em 2000, de crimes de reserva de investigação da PJ, veio alargá-lo, sem prestar a devida atenção a toda a evolução de monta que a PSP evidenciou. É bem paradigmático disso mesmo o facto do Ministério Público ter confiado a Operação Marquês, a investigação mais importante das últimas décadas, à PSP e à Autoridade Tributária e não, como seria teoricamente expectável, à PJ.
É possível alcançar uma maior colaboração entre as diferentes polícias?
Temo que a tão propalada e documentada colaboração entre OPC, sendo indiscutivelmente importante, é perene, está condicionada e apenas tolhe a eficiência do sistema. A informação, atualmente dispersa em repositórios individuais de cada ator, deveria estar totalmente concentrada e paritariamente disponível a todos os OPC, para alcançar o maior sucesso das investigações. Não é razoável que o acesso a essa informação esteja dependente da vontade gestionária de um dos atores do sistema. Apenas a centralização da informação, gerida por uma entidade supra polícias, que presta exclusivamente apoio à atividade de investigação criminal, poderia assegurar independente e proficiente coordenação.
Defende ainda que o LPC e a Unidade de Telecomunicações saia da dependência da PJ. Porquê?
O LPC e a Unidade de Telecomunicações, responsável pelo controlo das interceções telefónicas, bem como todas as unidades de apoio técnico que estão sob a gestão administrativa da PJ, tais como a Unidade Nacional Europol ou o Gabinete Nacional da Interpol, já deveriam estar, legalmente, sob a coordenação do Ponto Único de Contacto - Cooperação Policial Internacional e dependente do Sistema de Segurança Interna. O sistema AFIS (impressões digitais), o Gabinete de Recuperação de Ativos ou a Unidade de Coordenação e Intervenção Conjunta também deveriam ser centralizados e coordenados pelo Sistema de Segurança Interna, entidade supra ministerial, dependente do primeiro-ministro e que foi criada exatamente para assegurar uma coordenação efetiva entre todas as polícias e para lhes prestar todo o apoio necessário à atividade de investigação criminal. Como órgão independente, asseguraria toda a dimensão arbitral entre os atores do sistema, assegurando fluidez nos circuitos e fixando um sistema realmente paritário que, à semelhança da lei, não distingue OPC.
E nem falo do caso do LPC, cuja isenção pericial pode até ser questionável por estar sob o controlo de uma Polícia que encerra, em si mesmo, a recolha da prova (exames aos locais de crime), a investigação dos factos (processo) e a realização das perícias às provas. Não é razoável, partindo de uma lógica de 'checks and balances', que quem recolhe e investiga seja quem cataloga o valor das provas. Estas devem ser, à semelhança do que acontece com o Instituo Nacional Medicina Legal, asseguradas por órgão independente, que não abra espaço a dúvidas quanto à sua cientificidade e valor.