Gouveia e Melo: "Quando são atacados agentes do Estado, chegamos a outro patamar"
O chefe do Estado-Maior da Armada e da Autoridade Marítima Nacional não quer afrontar o poder legislativo e judicial, mas defende que a criminalização do fabrico, posse e uso de lanchas rápidas, como acontece em Espanha, ajudaria no combate ao narcotráfico. Gouveia e Melo também não reclama dos meios que tem, até em comparação com a GNR.
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Quando é que a Marinha entendeu que o narcotráfico é um problema grave?
A Marinha sempre entendeu que o narcotráfico, por via marítima, era um problema grave e que devia-mos dar o nosso contributo no seu combate. No entanto, desde que sou CEMA, dei instruções para reforçar a segurança da região Sul, porque tinha a noção que havia um aumento de narcotráfico. Há cerca de um mês, uma das embarcações de narcotráfico abalroou, de propósito, uma das embarcações da Polícia Marítima, tendo posto em perigo de vida quatro dos nossos agentes. Isso fez com que eu decidisse incrementar ainda mais as operações, não só pelo facto de a operação em si ter demonstrado que já há um desrespeito pela autoridade, como também para dar um aviso sério aos narcotraficantes. Quando são atacados agentes da autoridade do Estado chegamos a um outro patamar e nós estamos a reagir a isso.
Este abalroamento foi um fenómeno isolado ou é um sinal de que estes grupos estão mais violentos?
Não foi um fenómeno isolado, é um sinal de que estes grupos estão dispostos a um nível de violência superior. Já aconteceu com embarcações da GNR e isso é intolerável. Agentes da autoridade, que estão a tentar evitar que o tráfico se faça, serem ameaçados pelos próprios traficantes, é o caminho para que esses grupos tenham acesso, sem controle, às nossas costas e possam fazer as suas operações de forma tranquila. Isso não vamos permitir.
Esse sentimento de impunidade reflete-se numa maior quantidade de droga traficada no sul de Portugal?
As agências que tratam destes assuntos dizem que na Europa são traficadas cerca de quatro mil toneladas de haxixe e muitas dessas toneladas passam pela Península Ibérica para o Norte da Europa. Nós apanhámos, em 2021, cinco toneladas e, em 2022, 16 toneladas. Num único mês, em 2023, [apreendemos] 20 toneladas. Isto, por um lado, significa um incremento de fiscalização, mas também há, certamente, um incremento do tráfico pelas águas portuguesas.
Já perceberam as razões para o aumento do tráfico?
Os traficantes são muito adaptativos e, em função das dificuldades que têm de desembarque numa zona, vão usando outros locais. De alguma forma, devem ter concluído que a costa portuguesa era uma zona de desembarque vantajosa. Mas, só no início deste ano, apreendemos 12 embarcações de alta velocidade e estamos a acabar com a capacidade logística dessas redes, porque as embarcações não são fáceis de substituir.
Mossa ao tráfico de haxixe
Uma lei mais branda em Portugal relativamente às lanchas rápidas está a contribuir para que haja mais grupos criminosos a atuar no país?
Eu não posso dizer que uma lei mais branda possa estar a contribuir para esse facto, mas há fenómenos que mostram que alguns desses grupos se fixaram em Portugal. Foram apreendidas embarcações que estavam a ser fabricadas em empresas ou fábricas clandestinas em território português. Nunca fiz nenhum estudo comparativo que me permita afirmar, de forma clara, o que acabou de dizer, mas a sensação que temos é que estes grupos estão a atuar mais através do território nacional. E isso é uma preocupação, porque desestruturam a nossa sociedade.
A criminalização do fabrico, posse e uso de lanchas rápidas poderia facilitar o combate ao narcotráfico?
O haxixe é traficado em grandes volumes, entre três a quatro toneladas de cada vez, e tem que ser transportado de forma rápida. Portanto, as redes tendem a usar embarcações muito rápidas, construídas só para aquele fim e se houver uma legislação que, de alguma forma, combata o fabrico e a posse destas embarcações, contribuirá para a redução da sua capacidade logística. Iria fazer uma grande mossa ao tráfico do haxixe.
Medidas de coação mais duras para a tripulação das lanchas também ajudaria o combate ao narcotráfico?
Eu tenho dentro de mim a separação de poderes. Sobre o que o poder legislativo deve fazer para combater o tráfico pertence à esfera do poder legislativo. Sobre o que o poder judicial deve fazer para aplicar a lei pertence ao poder judicial. Claro que há ambientes que facilitam determinado tipo de atuações, mas agimos dentro do quadro legal e dentro do quadro dos equilíbrios que existem. E é assim que vamos continuar.
Os seus homens não se sentem impotentes quando os traficantes são detidos, levados a tribunal e libertados?
Mesmo que tenham esse sentimento têm que viver com ele, porque é assim que o regime democrático funciona. Não somos nós que fazemos as leis e não somos nós que aplicamos as leis. Para isso é que há separação de poderes e isso é o que defende o Estado democrático. O mais importante é perceber que estamos numa organização que pretende proteger um Estado democrático.
Lanchas também servem para distrair autoridades
Qual é o perfil das redes a atuar no Sul do país?
O narcotráfico é um fenómeno muito antigo, com rotas que partem do Norte de Marrocos para a costa portuguesa ou espanhola. Normalmente, estes grupos estavam associados a gangues marroquinos e espanhóis, muito ligados à Galiza e, neste momento, começa-se a notar a participação de gangues portugueses. Isto é preocupante, como é evidente.
Portugal serve apenas como porta de entrada da droga na Europa?
Algum do haxixe fica cá para abastecer o mercado interno, só que este não consegue esgotar a quantidade imensa de produto que chega à nossa costa e à costa espanhola. Por isso, o produto flui naturalmente para a Europa do Norte.
A droga sai de Portugal por via terrestre?
O que nos dizem e o que nós sabemos é que depois é por rotas terrestres que a droga evolui, porque as fronteiras estão abertas e o controlo é muito mais difícil hoje do que seria antigamente.
Qual é a estratégia dos cartéis que usam o mar português?
Eles são muito bem organizados e usam três tipos de lanchas. Umas, mais rápidas, fazem o transporte, outras levam muitos bidons de gasolina para reabastecer as que andam a transitar e, depois, ainda usam umas lanchas como lebres, para desviar a atenção das autoridades para que o desembarque se possa fazer numa outra praia. Quando a lebre é apanhada, não há lá droga e, embora a embarcação fique apreendida, as pessoas são libertadas. Mas quando a lancha que transporta a droga é apanhada, é muito mais penalizador. E quando conseguimos apanhar a lancha reabastecedora comprometemos toda a linha de distribuição, porque eles depois não têm meios de voltar para trás. Também já fizemos apreensões em que a droga foi transportada até um ponto intermédio e depois passada para embarcações de pesca que, de forma disfarçada, a trazem a droga para território português.
Há lanchas a sair da costa portuguesa?
Como não há uma proibição da sua utilização, pode acontecer que uma lancha esteja, num dia, a fazer estas operações e, dois dias depois, atracada numa marina como se nada fosse. Isso é um dos problemas que temos de resolver, mas bases, no sentido massivo do termo, não existem. Existe um conjunto de lanchas dispersas que operam tanto da costa portuguesa como da costa de Marrocos e de Espanha.
Mas já foram localizadas lanchas em construção, em Portugal.
Estas lanchas têm de ser construídas algures e se não o forem num determinado país, porque a legislação não permite ou é mais agressiva, serão construídas em países em que a legislação é menos repressiva ou em que a fiscalização não seja tão forte. E foram detetadas recentemente algumas destas fábricas de lanchas clandestinas no país.
Que lanchas são estas?
São lanchas robustas, com motores de última geração e equipamento de navegação avançado. Cada lancha destas custará para cima de meio milhão de euros e estão a tornar-se cada vez mais sofisticadas e com capacidade até para intercetar comunicações e perceberem se nós [Polícias] estamos ou não junto a elas. E há suspeitas, apesar de nós nunca termos apanhado alguma, de lanchas que têm alguma capacidade de guerra eletrónica e detetam radares que estejam a controlar a área.
Algumas dessas embarcações também percorrem grandes distâncias...
Sim, são outro tipo de lanchas, que navegam praticamente submersas e já ajudámos a apanhar uma, na Galiza. São lanchas usadas essencialmente para o tráfico de cocaína. Os traficantes têm um financiamento gigantesco, não têm que fazer compras seguindo determinados procedimentos e, portanto, têm uma vantagem sobre nós, mas fazemos tudo para que essa vantagem não seja de modo a que o mar seja deles.
"Eu tenho os meios que Portugal me dá
Como é que a Marinha responde a esse desafio?
Temos uma vantagem decisiva. Somos militares, muito treinados, com equipamentos que também não são de fácil aquisição ou de utilização corrente.
Garante que a costa portuguesa está em permanente vigilância?
Estamos em atividade permanente na costa portuguesa e, na zona sul, com muito mais acuidade. A nossa intenção é criar uma forte irrupção neste tráfico. Não sei se conseguiremos quebrar o tráfico completamente, mas pelo menos uma forte irrupção vamos conseguir fazer.
E tem meios para alcançar esse objetivo?
Eu tenho os meios que Portugal me dá. A minha obrigação é fazer o máximo com os meios que me dão.
Está em concurso a aquisição de seis navios-patrulha. Serão fundamentais no combate ao narcotráfico?
São navios oceânicos com grande capacidade, que nos permitem permanecer no mar durante muito tempo, controlando grandes ondas oceânicas. E é claro que a vinda deles será um grande incremento nas nossas capacidades.
Esse processo foi alvo de veto do Tribunal de Contas. Quando é que estarão disponíveis?
O veto do Tribunal de Contas atrasou o processo cerca de três meses e, neste momento, está em fase de contratação. Não haverá um grande atraso.
O Estado tem feito um grande investimento em meios marítimos para a GNR. A Marinha sente-se preterida?
A Marinha não comenta investimentos de outras entidades. Fazemos o que podemos e o máximo que podemos com os meios que nos dão. Esperamos que as outras entidades façam exatamente o mesmo. Trabalhamos todos para um Estado e estamos todos empenhados na mesma luta.
No que diz respeito ao combate ao narcotráfico, há demasiadas competências dispersas por várias entidades?
Mais uma vez, esse é um problema político, que não me cabe a mim, neste momento e em público, comentar. Enquanto oficial de Marinha tenho a obrigação, com os meios que o Estado me dá, de fazer o máximo que posso pelas missões que me estão atribuídas. Uma das missões é combater o narcotráfico através do mar alto para a costa portuguesa e é isso que estamos a fazer com todo o empenho e toda a energia.
Foi assinado, já no final do ano passado, um protocolo entre as várias entidades ligadas ao combate ao narcotráfico. Esse acordo veio estabilizar aquilo que é a função de cada um e, sobretudo, definir uma estratégia comum?
Criar uma estabilidade final é idílico e nunca acontecerá. Mas o protocolo veio melhorar a situação e a obrigação de todas as entidades do Estado é trabalhar umas com as outras, melhorando sempre a coordenação em favor do próprio Estado a que se pertence. É isso que estamos a fazer todos os dias.
Projetou um navio multifunções avaliado em cem milhões de euros. Qual será o seu papel no combater ao narcotráfico?
É um meio muito importante. Pelo facto de ser um porta-drones, um pequeno porta-aviões com drones, acaba por ter um contributo gigantesco quando queremos controlar grandes áreas e precisamos de meios aéreos orgânicos. O navio será uma mais-valia gigantesca para o processo.
O uso de drones é fundamental para vigiar o mar até às 12 milhas?
Será fundamental, não só até às 12 milhas, mas da costa portuguesa até às outras costas. O tráfico não começa nas 12 milhas, faz-se às 100, 200, 300 milhas da nossa costa e é mais fácil detetá-lo a meio do oceano do que já junto à costa. Esse navio, que tem uma grande capacidade de vigiar uma área muito alargada, com capacidade para atuar e para servir de suporte a essa atuação, inclusive com embarcações de alta velocidade que possam fazer base nesse navio no meio do mar, terá um impacto extraordinário em cortar essas linhas de comunicação internacionais.
Já há uma data para este navio navegar nas águas portuguesas?
Não, ainda não temos nenhuma data. Estamos todos a trabalhar no sentido de conseguir transformar este projeto numa realidade para o país.