A defesa de um dos três inspetores do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) acusados de matar à pancada um cidadão ucraniano no aeroporto de Lisboa atribui parte das feridas identificadas no corpo de Ihor Homeniuk à convulsão que este sofreu dois dias antes de morrer, a 12 de março de 2020.
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Na contestação à acusação do Ministério Público (MP), consultada esta sexta-feira pelo JN, a advogada de Luís Silva, Maria Manuel Candal, insinua ainda que foram seguranças do Espaço Equiparado a Centro de Instalação Temporária (EECIT) do SEF no aeroporto a manietar e agredir a vítima.
A tese quanto ao comportamento dos vigilantes de uma empresa contratada pelo SEF é partilhada por outro dos arguidos, cuja argumentação foi, esta sexta-feira, divulgada pelo semanário "Expresso". Tal como a representante de Silva, Ricardo Sá Fernandes, mandatário de Bruno Sousa, apoia a sua posição nas imagens de videovigilância do EECIT, que não cobre a sala onde Homeniuk terá sido assassinado.
Já Ricardo Serrano Vieira, mandatário do terceiro inspetor, Duarte Laja, limita-se, na contestação, a negar a prática dos crimes. O julgamento começa na próxima terça-feira, 2 de fevereiro, no Tribunal Central Criminal de Lisboa. Os arguidos estão acusados, em coautoria, de um crime de homicídio qualificado, punível com pena entre 12 e 25 anos de prisão. Laja e Silva respondem igualmente por detenção de arma proibida. Há dez meses que se encontram, por decisão judicial, em prisão domiciliária.
Homeniuk, de 40 anos, morreu a 12 de março de 2020, dois dias depois de a sua entrada em Portugal ter sido recusada ao aterrar em Lisboa, alegadamente por não ter visto de trabalho. O MP alega que foi espancado, incluindo com um bastão extensível, pelos três inspetores do SEF, de 42, 44 e 48 anos. Terá sido depois deixado manietado e deitado de barriga para o chão, asfixiando lentamente até à morte. Uma versão que Silva e Sousa rejeitam.
À guarda dos seguranças
"É total e absolutamente falso que qualquer dos arguidos [...] tenham desferido socos, pontapés ou pancadas com qualquer bastão extensível", alega, na contestação, Candal. A causídica acrescenta que Homeniuk foi deixado deitado de lado, em "segurança", precisando que as chaves das algemas foram entregues aos seguranças, para que estas fossem "retiradas e/ou aliviadas" quando o ucraniano se acalmasse.
De acordo com a acusação, Homeniuk ter-se-á desequilibrado e caído, a 10 de março, no aeroporto de Lisboa. Um inspetor que não foi acusado de qualquer crime terá então assumido que o imigrante não conseguiria respirar, introduzindo-lhe uma caneta na boca para lhe desenrolar a língua. Nessa mesma noite, Homeniuk foi transferido para o Hospital de Santa Maria, também na capital. Após vários exames, teve alta, com indicação para tomar dois medicamentos. Já no EECIT ter-se-á mantido agitado.
Segundo a mandatária de Silva, terá sido nessa queda inicial e no socorro que então lhe foi prestado que o cidadão ucraniano terá perdido um dente e ficado com sangue na boca. Além disso, sublinha, ter-lhe-á sido receitado no hospital um terceiro medicamento para a abstinência alcoólica, que, por estar esgotado na farmácia do aeroporto, nunca terá tomado. Terá sido isso que justificou a sua agitação e o seu isolamento na sala "Médicos do Mundo". É partir daqui que Candal - e, segundo o "Expresso" também Sá Fernandes - apontam o dedo aos vigilantes de serviço.
No documento, a advogada argumenta que os fotogramas mostram que, entre as 00.44 e as 01.07 horas de 12 de março, dois dos seguranças saíram e entraram por diversas vezes da sala, com "rolos de fita adesiva" e com "pares de luvas sobrepostas". Um deles terá ainda intercetado e empurrado Homeniuk violentamente para dentro da sala, enquanto outro terá feito um gesto a indiciar que lhe iria bater. A determinada altura, um deles terá entrado com um livro de capa dura na sala. No local, estariam também duas vigilantes, que teriam um olhar "apreensivo".
A equipa do turno seguinte chegou pelas 08.00 horas e terá, nessa altura, referido que a vítima teria a "cara inchada". Foi então, lê-se na contestação, que a pedido de um superior hierárquico, Silva, Sousa e Laja foram à sala "Médicos do Mundo" para imobilizarem o cidadão ucraniano. Tê-lo-ão feito usando apenas a "força indispensável". A partir das 08.55 horas, Homeniuk terá ficado à guarda dos vigilantes, que não terão mostrado "qualquer preocupação". O óbito foi declarado pelo INEM às 18.40 horas, por "paragem respiratória presenciada após crise convulsiva".
Cremação impede nova perícia
A causa da morte acabaria por ser alterada na sequência da autópsia, com um médico do Instituto Nacional de Medicina Legal a reportar às autoridades a possibilidade de estar em causa um homicídio. A sua competência para tal é, contudo, posta em causa pela defesa de Silva, que alega que o clínico não é "especialista em medicina legal".
"Num caso com a complexidade do presente - em que teria ocorrido uma morte sob custódia - seria crucial uma descrição mais pormenorizada, individualizada e sistematizada de cada lesão traumática. E nunca, como é o caso, uma descrição imprecisa, englobando diferentes lesões numa só descrição", sustenta.
Candal critica, ainda, que o médico não tenha levantado objeção à cremação do cadáver, autorizada posteriormente pelo MP. A defesa lamenta, por isso, o facto de estar "impedida de solicitar nova perícia".