Quatro homicídios num ano em guerras de grupos de "drill". Música e série violentas inspiram. Referenciados 700 jovens na Grande Lisboa.
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Quatro jovens foram mortos no ano passado, na Grande Lisboa, em confrontos e ajustes de contas entre grupos juvenis, numa onda de violência que só no outono começou a abrandar. Copiam comportamentos inspirados nas redes sociais e em séries da televisão para se afirmarem, mas o que os move é sobretudo o "drill", um estilo musical que glorifica os confrontos violentos entre grupos rivais. A Polícia Judiciária (PJ) está a monitorizar 27 destes grupos, envolvendo cerca de 700 jovens, apenas na Grande Lisboa. Para muitos, defendem especialistas, "a violência traz o sentido único na vida".
"Marcelo chinada na chest, 3 na barriga puto eliminado", é a letra da música dos PKA 45, um grupo de "drill" de Queluz que tinha um desafio pendente ("beef") com o grupo MDM, de Chelas. Marcelo Correia, 16 anos, foi morto com três facadas na estação da Reboleira, em 2020, numa luta entre estes dois grupos. Nas suas músicas, gabam-se das mortes, de cara tapada. "No face, no case" (sem cara não há processo), apregoam, e até identificam próximas vítimas.
Nas zonas limítrofes da capital, alguns dos jovens autointitulam-se de "Sully", "Duschane" e "Jamie", três dos protagonistas mais violentos da série "Top boy", da Netflix, que retrata de forma brutal e muito realista a violência entre gangues juvenis de Londres em luta pelo domínio do tráfico de drogas. A série tem dividido opiniões, entre os que apoiam a denúncia de uma realidade incómoda e os que temem a cópia de comportamentos violentos. Os grupos de Lisboa, Amadora, Sintra e Loures têm em comum as lutas combinadas e a vida sempre em risco. Alguns são também "frios", "calculistas" e "muitíssimo perigosos".
Os confrontos são marcados nas redes sociais, mas também há ajustes de contas e emboscadas em pleno dia e na via pública. O JN ouviu ainda relatos sobre elementos de grupos de "drill" de outros países que vêm a Portugal fazer ataques violentos, a pedido, e depois fogem, dificultando a investigação.
"Boom" desencadeia reação
O pico de casos atingido no ano passado marcou um ponto de viragem relativamente à forma como este tipo de delinquência juvenil grave e violenta passou a ser encarado. Em 75 situações de homicídio consumado ou tentado registadas pela PJ nos primeiros seis meses, 16 envolviam estes grupos. Até setembro, quatro jovens foram assassinados.
No primeiro semestre de 2019, o único comparável com 2022, por estarem ambos fora da influência da pandemia, tinham sido registados apenas sete casos. Até ao final do ano passado, a PJ tinha em curso perto de centena e meia de inquéritos, envolvendo principalmente jovens de 18 a 21 anos, mas onde surgem outros cada vez mais novos, nalguns casos com apenas 14.
Este "boom" motivou uma resposta quase imediata das autoridades, com o aumento da vigilância e da pressão sobre estes grupos, com várias detenções. Fonte da PJ disse ao JN que os resultados desta estratégia começaram a notar-se em setembro passado, com uma acalmia que se mantém até agora. No entanto, garante, a criminalidade violenta relacionada com estes grupos é bastante volátil, podendo recrudescer a qualquer momento. "O problema está diagnosticado e os envolvidos monitorizados", garante a fonte, explicando que a adesão dos jovens a estes grupos "exponencia os resultados das suas ações nas redes sociais", mas também "permite a disseminação da responsabilidade e dificulta o trabalho de investigação".
Maria João Leote de Carvalho, investigadora de delinquência juvenil na Universidade Nova e membro da Comissão de Análise Integrada da Delinquência Juvenil e da Criminalidade Violenta, criada pelo Governo no ano passado, considera que "os jovens encontram nos grupos de "drill" a possibilidade de afirmação, de ter um público nas redes sociais e na darkweb, e conseguem-no mostrando um desvalor total pela vida humana". "Muitos nem têm receio da prisão, é o caminho natural que percorrem para atingir o estatuto que procuram e, para estes, a violência traz o sentido único na vida", afirma. O nível de adesão também é preocupante "Antes, eram seis ou sete que se encontravam para ajustar contas, hoje vemos dezenas ou centenas", nota.
O fenómeno não é exclusivo de Portugal, nem resulta unicamente de "mimetismos". "Julgo ser o uso da Internet e das plataformas sociais sem supervisão o principal motivo da escalada da violência, mais do que a imitação daquilo a que assistem noutros países", refere a especialista.
SEGURANÇA
Fenómeno no topo da agenda das autoridades
O fenómeno mantém-se, no topo da agenda das Equipas Mistas de Prevenção da Criminalidade, criadas no âmbitos do Sistema de Segurança Interna , onde pontificam vários ministérios e as polícias, incluindo a PJ. Aliás, o tema fez parte de duas reuniões ocorridas na semana passada.