Juíza diz que tribunal "não é uma brincadeira" após julgamento adiado por falta de comparência
O julgamento de quatro arguidos suspeitos de peculato, extorsão qualificada e branqueamento de capitais em processos de insolvência, marcado para hoje no Tribunal de Leiria, foi adiado para 5 de maio, por falta de comparência de advogados, de dois arguidos, e a pedido das advogadas oficiosas, nomeadas no próprio dia.
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“Era o que mais faltava que um julgamento com quatro arguidos não comece na data marcada”, observou a presidente do coletivo de juízes. “Isto não é uma brincadeira. Isto é um tribunal”, avisou, dirigindo-se aos únicos dois arguidos que compareceram no julgamento, que considerou “complexo”.
“Todos o intervenientes estão convocados. Isto não é um sítio onde as pessoas vão quando lhes apetece”, sublinhou a magistrada. “E não é às 23 horas de domingo que se apresentam requerimentos”, disse. “Iremos saber de quem é a responsabilidade destes avisos em cima a hora", prometeu.
A juíza considerou que os julgamentos são para ser feitos, e não adiados. “Não vamos estar à espera de que compareçam todos”, garantiu. “Os factos são de 2010. Vamos começar na próxima segunda-feira. Se não for nessa, é na outra, ou na outra”, assegurou. “E, se for preciso, separa-se o processo. Isto não é para ser um megaprocesso, e estarmos aqui à espera que se desembrulhe.”
Um milhão “desviado”
De acordo com a Lusa, no despacho de acusação, confirmado por um juiz de instrução, o Ministério Público (MP) sustentou que um dos advogados, de Anadia (Aveiro), integrou no seu património cerca de um milhão de euros que pertenciam a massas insolventes ou pessoas singulares.
Este arguido responde por sete crimes de peculato relativos a processos de insolvência de empresas, de diferentes setores de atividade e locais do país, nos quais foi nomeado administrador judicial, entre 2009 e 2014.
Numa das situações, de uma empresa de impermeabilizações, o MP referiu que o administrador de insolvência fez seus 362.110,37 euros destinados ao pagamento de credores.
Noutro caso, de uma gráfica de Coimbra, geriu o património desta insolvente “como bem entendeu” para “se apoderar do máximo de valores que o cargo” lhe permitisse.
Movimentos bancários suspeitos
O MP elencou movimentos bancários supostamente feitos pelo advogado, destacando levantamentos em ATM de 942,76 euros na Tailândia e pagamentos eletrónicos de 5253,15 euros “em hotéis e restaurantes”.
Quanto à suposta prática do crime de extorsão qualificada que o MP imputou em coautoria com outro advogado, de Cascais (Lisboa), e um contabilista certificado de Torres Novas, reporta-se a uma empresa de calçado que tinha cerca de 30 lojas no país e mais de 100 trabalhadores.
Segundo o despacho, o sócio-gerente da empresa de calçado contactou o advogado de Cascais para que este instaurasse um processo especial de revitalização (PER), o que fez, indicando o advogado de Anadia como administrador judicial provisório.
Face às dificuldades financeiras que a empresa enfrentava, foi decidido, com o conhecimento do advogado de Cascais, “canalizar as receitas que a mesma ainda obtinha” (342.430 euros) para uma conta de outra sociedade, para evitar “providências judiciais”.
Na manhã de 23 de janeiro de 2014, o administrador judicial provisório convocou com urgência uma reunião para as 14 horas, nos escritórios da empresa em Alcobaça (Leiria), onde compareceu com o contabilista e o outro causídico.
Transferência sob pressão
Quando se abordou a transferência dos valores da empresa de calçado para a outra sociedade, o administrador judicial ordenou ao sócio-gerente para proceder à “imediata transferência” dos 342.430 euros para a sua conta pessoal, alegando que o não acatamento teria como consequência a cessação do PER e o fecho das lojas, relatou o MP.
O sócio-gerente questionou o advogado de Cascais se deveria obedecer a esta ordem e aquele, “ciente de que era um logro”, respondeu afirmativamente. No dia seguinte, “perante a relutância entretanto demonstrada” pelo sócio-gerente, os dois advogados e uma pessoa a mando do contabilista “ligaram-lhe diversas vezes”, ordenando-lhe a transferência, sob pena do fecho das lojas.
“Desesperado e dominado pelo medo”, o sócio-gerente ordenou ao filho o depósito de 322.326,49 euros na conta indicada pelo administrador.
O MP salientou que tudo não passou de uma “encenação montada” pelos dois advogados e o contabilista, que não utilizaram a verba para o PER, mas repartiram-na entre os três, tendo sido decretada a falência da empresa de calçado.
O advogado de Cascais responde também pelo crime de branqueamento, assim como o seu irmão, a quem pediu para depositar na conta da mãe de ambos um cheque emitido pelo administrador judicial provisório e depois levantar o dinheiro. Idêntica situação ocorreu com um cliente do advogado.
O MP pede que sejam pedidas a favor do Estado as quantias de 1.002.970,28 euros (advogado de Anadia e administrador de insolvência), 122.956,70 euros (contabilista) e 60 mil euros (advogado de Cascais).