Juíza de Famílias e Menores considera que progenitora instrumentalizou menina e não deu a violência como provada. Homem foi entretanto condenado, noutro tribunal, pela agressão. Testemunho da filha fundamental.
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O Tribunal de Família e Menores (TFM) de Sintra determinou, em abril e por proposta do Ministério Público (MP), que uma criança de 11 anos vai ter de começar a passar fins de semana alternados em casa do pai, numa altura em que este já tinha sido acusado num inquérito-crime, por outro magistrado do MP, de ter batido na mãe à sua frente. A juíza do TFM fala em instrumentalização da menina pela progenitora, considera não haver, "objetivamente, fundamento" para que o pai "não possa conviver livremente com a sua filha" e dá a agressão como não provada.
Fez terça-feira uma semana, no entanto, o homem, de 46 anos, foi mesmo condenado pelo Tribunal Criminal de Sintra por, em maio de 2018, ter insultado e agredido no chão a ex-mulher na presença da criança. O testemunho desta, que não está com o pai desde 2019, foi fundamental para provar o crime (ler ao lado).
O enredo do caso que deu origem a estas decisões aparentemente descoordenadas e contraditórias começa a desenrolar-se em 2014, quando o casal pôs fim a uma união de facto de quatro anos. Pouco depois, a mulher formalizou uma queixa por violência doméstica contra o ex-marido, processo que terminou, em 2019, com a condenação do ex-companheiro a uma multa por crime de injúria.
Ainda em 2014, o homem pediu a regulamentação das responsabilidades parentais. A decisão provisória do TFM surgiu em janeiro de 2015: a menina, então com três anos, ficaria a morar com a mãe e passaria fins de semana alternados com o pai. Só que, em março seguinte, a mulher informou a Comissão de Proteção de Crianças e Jovens de que a filha se queixara de que o pai lhe tinha posto "o dedo no pipi". Perante a denúncia, o Tribunal suspendeu as pernoitas na casa do progenitor, substituindo-as por encontros supervisionados.
abuso sexual sem provas
A partir daqui, o processo complica-se ainda mais. Com a mãe a opor-se a que a criança esteja com o pai, as faltas e a resistência da menina aos encontros foram crescendo, com um relatório psicológico a alertar, em 2016, que poderia estar a ser influenciada pela mãe.
Em janeiro de 2018, o MP arquivou o inquérito contra o homem por abuso sexual, por não existirem "indícios suficientes que possibilitem, para além de qualquer dúvida razoável, a prova dos factos denunciados". Em julho de 2020, o processo das responsabilidades parentais foi retomado, culminando na decisão de abril passado.
Na sentença, o TFM lembra que, em 2017, os relatórios das´técnicas mostravam que a menor tinha boa relação com o pai e os avós paternos. "Considerando que [...] a relação [...] parecia restabelecida, e que inexistiu proximidade existencial entre a menor e o progenitor que pudesse justificar a rejeição, só alguém ou algum evento exterior à relação paterno-filial pode explicar o retrocesso, afigurando-se-nos tratar-se de influência/contaminação da progenitora e da família materna", salienta a juíza.
A magistrada lembra, ainda, que o homem foi ilibado de abuso sexual e que não ficou provado que tenha batido na ex-mulher à frente da criança. Decidiu, por isso, reinstituir, a partir de sexta-feira passada e mediante apoio psicológico, os fins de semana alternados em casa do pai. A menina tem-se recusado a cumprir a decisão, da qual a mãe já recorreu.
700 euros por agredir ex-mulher à frente da filha
Condenação surgiu após alteração do regime de visitas. Ataque tinha ocorrido há quatro anos
Cerca de dois meses depois de o Tribunal de Família e Menores (TFM) de Sintra ter dado como não provado que o homem agredira a ex-companheira à frente da filha de ambos, numa altura em que este já tinha sido acusado do crime, o Tribunal Local Criminal de Sintra condenou-o a pagar 700 euros de multa por, na situação em causa, ter pontapeado a mulher no chão com a menina a ver, escondida num carro.
De acordo com a sentença, proferida no passado dia 21 de junho, o episódio aconteceu a 5 de maio de 2018, depois de a criança ter, mais uma vez, recusado estar com o progenitor numa sessão mediada, como determinara o TFM, por técnicas da Segurança Social. À saída, o homem ter-se-á dirigido à ex-mulher, chamando-lhe "p***" antes de a empurrar e fazer cair ao chão. Depois, com esta já prostrada, ter-lhe-á dado vários pontapés na perna esquerda.
Quando a confusão começou, a criança terá fugido para o carro, de onde acabou por presenciar, de forma fragmentada, o sucedido. Em tribunal, o seu testemunho acabou por ser fundamental - a par do da avó materna, também presente no local - para condenar o pai, que negou os atos que lhe foram imputados pelo Ministério Público (MP). Os depoimentos deste e da vítima não foram considerados pela juíza, por serem "pouco espontâneos" e dado o "agudo conflito" que mantêm desde 2014 pela guarda da filha, de 11 anos.
Violência doméstica caiu
O contexto em que a agressão ocorreu ditou, de resto, que o homem fosse condenado por ofensa à integridade física simples e não por violência doméstica, como tinha sido acusado pelo MP. Em causa está o facto de, apesar de o seu comportamento ser "grave", não ter, com o ataque, afetado a "dignidade pessoal" da vítima, segundo a decisão judicial.
"(...)olhando à imagem global dos factos, não se vislumbra a existência de um abuso de poder do arguido face à pessoa assistente [a ex-companheira], mas sim uma ação explosiva e de violência por aquele assumida em contexto de desgaste emocional e na imediata sequência de mais um ato de rejeição da sua filha", frisa a juíza.
Além de pagar uma multa de 700 euros, o homem, já anteriormente condenado por injuriar a ex-companheira, tem ainda de indemnizar em mais 700 euros a mulher. Eram exigidos três mil euros, mas o tribunal considerou que, uma vez que não se trata de violência doméstica, a "culpa do arguido" é "menor".
A decisão é ainda passível de recurso. Contactado pelo JN, o advogado do arguido, Gião Falcato, não se quis pronunciar nem sobre o processo de regulação das responsabilidades parentais nem sobre a condenação por agressão do seu cliente.
Já o mandatário da ex-companheira deste, Gameiro Fernandes, lamenta que existam tribunais de família e menores que põem "os interesses dos progenitores, mesmo que agressores, acima do superior interesse da criança".
Número
639 denúncias, no ano passado, em que a vítima da violência doméstica foi um menor, mais 8,1% do que em 2020, segundo o Relatório Anual de Segurança Interna. Noutras 22 524 participações, o alvo foi um cônjuge ou análogo.
Combate
Especialização
Em 2019, segundo o relatório de 2021 da Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Proteção das Crianças e Jovens, o aumento do número de homicídios em contexto de violência doméstica, "muitos dos quais presenciados por crianças e jovens", levou o Conselho Superior do Ministério Público a criar Secções Especializadas Integradas de Violência Doméstica.
Proteger as crianças
Atualmente, estas estruturas existem em Lisboa, Matosinhos, Porto, Seixal e Sintra. Têm por missão combater a violência doméstica e "proteger as crianças e jovens de contextos familiares violentos".