Conselho Superior prevê impedimentos em catadupa devido a norma do pacote anticorrupção que veda instrução a juízes de inquérito.
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Cerca de um mês depois de a Assembleia da República ter aprovado uma norma, inserida no pacote anticorrupção, que vai impedir os juízes de dirigirem a instrução e o julgamento de processos quando tenham intervindo na fase de inquérito, o Conselho Superior da Magistratura (CSM) alerta para o "caos" que esta mudança vai gerar nos tribunais, dada a falta de recursos humanos. E apela ao legislador que "aperfeiçoe" o diploma, já promulgado pelo presidente da República, até à data de este entrar em vigor, em março de 2022. A eventual alteração legislativa só poderá ser discutida e validada pelo Parlamento que resultar das eleições de 30 de janeiro.
De acordo com a atual versão do Código de Processo Penal, um juiz que pratique qualquer ato na fase de inquérito pode depois dirigir a instrução do processo. Se o fizer, fica, porém, impedido de participar no julgamento do caso. Tal como qualquer magistrado que, mesmo não tendo presidido à instrução, tenha aplicado uma medida de coação, como prisão preventiva, durante a investigação.
São estes impedimentos que agora são alargados. Os juízes que pratiquem qualquer ato no inquérito ficam proibidos de intervir, depois, na instrução e no julgamento do processo. Isto, num contexto territorial em que seis comarcas, todas no Interior, não têm tribunais de instrução criminal e, das restantes 17, poucas são as que têm mais de dois juízes com esta especialidade (ver tabela ao lado).
"O CSM debater-se-á com problemas de substituição dos magistrados de difícil resolução", frisa, ao JN, o órgão de gestão dos juízes, prevendo que não vai ser possível escapar a uma catadupa de impedimentos. Desde logo, nas comarcas onde está colocado só um juiz de instrução, como acontece em Viana do Castelo e Évora e nos arquipélagos da Madeira e Açores.
"Esvaziamento de funções"
O CSM, presidido por inerência pelo presidente do Supremo Tribunal de Justiça, Henrique Araújo, sublinha que o juiz "estará sempre impedido de realizar a instrução, que terá de ser efetuada pelos juízes do [Tribunal] Local Criminal, que, por sua vez, poderão eles próprios estar impedidos, caso tenham intervindo em qualquer dos atos de inquérito mencionados, sendo certo que, intervindo estes na instrução, estarão impedidos no julgamento, o que acarretará mais problemas de substituição". Tal conduzirá, "no limite", à "subversão do princípio da especialização dos tribunais" e obrigará, na Madeira e nos Açores, a que os juízes viajem entre ilhas.
Já nas comarcas com dois juízes, como Porto Este, Viseu ou Setúbal, os magistrados poderão, "por força das novas regras", "estar sempre impedidos de realizar a instrução, o que redundará num esvaziamento das suas funções". Os problemas com as substituições, assegura aquele órgão, sentir-se-ão também nas comarcas sem juízos de instrução criminal, onde os atos são praticados por magistrados de outros tribunais. A questão fora, de resto, já recentemente levantada pelo presidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses, Manuel Soares.
"É muito difícil mitigar os efeitos das normas agora aprovadas e estamos em crer que o legislador, agora ciente das dificuldades práticas, obviará à sua efetivação", afirma o CSM, apelando a que aquele aproveite o interregno até à entrada em vigor da lei para a aperfeiçoar. Caso contrário, conclui aquele órgão, as situações identificadas "poderão pôr em causa o direito de acesso aos tribunais garantido" na Constituição, "bem como o direito a uma Justiça em tempo razoável".
Fases
Inquérito
O inquérito corresponde à investigação. É liderado pelo Ministério Público, mas certos atos - como detenções, buscas ou escutas - só se podem realizar com a autorização de um juiz.
Instrução
A instrução é uma fase facultativa do processo, na qual os arguidos pedem a um juiz que aprecie se a acusação do Ministério Público cumpre os requisitos para o caso seguir para julgamento.
Julgamento
Os julgamentos são, consoante a gravidade dos crimes, presididos por um juiz ou por um trio de três juízes. Os magistrados apreciam as provas indicadas pela acusação e pela defesa. No fim, condenam ou absolvem os arguidos.