O ex-secretário de Estado da Saúde, Lacerda Sales, foi constituído arguido por suspeitas de abuso de poder no caso de favorecimento de duas gémeas luso-brasileiras no acesso ao Zolgensma, um dos fármacos mais caros do mundo. Esta quinta-feira, a PJ realizou 11 buscas, nomeadamente no Hospital de S. Maria, em Lisboa.
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"Em causa estão factos suscetíveis de configurar, nomeadamente, crime de prevaricação, em concurso aparente com o de abuso de poderes, crime de abuso de poder na previsão do Código Penal e burla qualificada", informou em nota publicada no seu site o Departamento de Investigação e Ação Penal (DIAP) Regional de Lisboa.
Já ao final da manhã desta quinta-feira, a Polícia Judiciária (PJ) emitiu um comunicado em que acrescenta àquele rol de crimes o de tráfico e influências.
Cerca de 50 inspetores da Unidade Nacional de Combate à Corrupção da PJ e peritos desta Polícia, acompanhados de magistrados do Ministério Público e juízes, entraram no Hospital de Santa Maria ao início da manhã e noutros locais, para recolher documentação que ajude esclarecer se foram ou não cometidos aqueles crimes neste caso que pôs debaixo de fogo o presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, o seu filho, Nuno Rebelo de Sousa, e o antigo secretário de Estado Adjunto e da Saúde, António Lacerda Sales.
As buscas estão a decorrer em instalações do Ministério da Saúde e da Segurança Social, a duas Unidades do Serviço Nacional de Saúde (SNS) e a domicílio, segundo informou o DIAP Regional de Lisboa.
No seu comunicado, a PJ disse apenas que as buscas ocorreram na Área Metropolitana de Lisboa e foram executadas "a fim de consolidar a investigação em curso" à prática dos referidos crimes. "Procura-se a recolha de equipamentos de telecomunicações, informáticos, prova de natureza documental, correio eletrónico, elementos que serão submetidos a exames e perícias, tendentes ao cabal esclarecimento dos factos", acrescentou.
Relatório da IGAS
O inquérito aberto pelo Ministério Público tem como principal documento de trabalho o relatório de que a Inspeção-Geral das Atividades em Saúde (IGAS) deu nota em 4 de abril. O documento não foi divulgado na sua totalidade, mas a IGAS revelou algumas conclusões, designadamente, a de que o "não foram cumpridos os requisitos de legalidade no acesso das duas crianças a consulta de neuropediatria [no Hospital de Santa Maria]".
Em comunicado emitido naquele dia, a IGAS confirmou que a marcação da consulta não respeitou a portaria n.º 1457/2017, que regula o sistema integrado de acesso dos utentes ao Serviço Nacional de Saúde. Também foram criticados os procedimentos adotados pelo Ministério da Saúde e pelo Infarmed, ainda que a IGAS tenha concluído que "a prestação de cuidados de saúde decorreu sem que tenham existido factos merecedores de qualquer tipo de censura".
O relatório, que a IGAS remeteu então ao Ministério Público, recomendou ao Hospital de Santa Maria que, na marcação da primeira consulta de especialidade, haja uma referenciação prévia de um médico, como de resto exige a lei.
A Secretaria Geral do Ministério da Saúde, recomendou também a IGAS, deve garantir que "a documentação que lhe é encaminhada por parte dos gabinetes dos membros do Governo, para tratamento, foi objeto de despacho pelo membro do Governo, ou pela pessoa do Gabinete na qual tenha sido delegada essa responsabilidade".
Origem da polémica
Uma reportagem da TVI revelou em 2023 que a primeira consulta das gémeas luso-brasileiras tinha sido pedida pelo então secretário de Estado Lacerda Sales, que integrava o conselho de administração do Hospital de Santa Maria antes de ir para o Governo em 2019.
A IGAS concluiu que quem enviou o email para o hospital foi a secretária de Lacerda Sales, depois de, num primeiro momento, ter sido mandatada para falar com Nuno Rebelo de Sousa, filho do presidente da República, que queria marcar uma consulta para as gémeas. Neste contacto, a secretária terá obtido informações pessoais das duas crianças junto de Nuno Rebelo Sousa, que veio a enviar para o hospital, a fim de ser marcada a consulta.
Em dezembro de 2023, a então presidente do conselho de administração do Santa Maria, Ana Paula Martins, que é hoje ministra da Saúde, confirmou que tinha sido a Secretaria de Estado da Saúde a fazer a referenciação das gémeas para a primeira consulta de neuropediatria.
Nuno Rebelo de Sousa, que tem residência no Brasil, apareceu inicialmente no caso por se ter sabido que teria enviado um email ao pai no sentido de o sensibilizar para o problema das suas crianças. O presidente da República admitiu ter recebido o email do filho a alertá-lo para o caso das crianças, mas rejeitou "qualquer favorecimento" e enviou documentação para a Procuradoria-Geral da República, órgão de topo do Ministério Público.
Quatro milhões de euros
A IGAS também criticou o Infarmed pela sua atuação no caso, fazendo-lhe notar que tem de cumprir as regras de "submissão, avaliação e aprovação dos pedidos de autorização excecional dos medicamentos mais caros.
Cada toma de Zolgensma custa cerca de dois milhões de euros, pelo que o caso das gémeas, que já tinham nacionalidade portuguesa quando o tomaram, representou um custo de quatro milhões de euros para o Estado.