Tribunal Europeu dos Direitos Humanos considerou que homem de 50 anos não respeitou prazo legal. Justiça portuguesa atribuíra paternidade a septuagenário denunciado por uma tia mas decisão foi anulada.
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Abel G. viveu 50 anos sem saber quem era o pai e só após a morte da mãe é que uma tia lhe terá revelado o nome do progenitor. Nessa ocasião, quis esclarecer todas as dúvidas com um teste de paternidade e dois tribunais chegaram a declarar um septuagenário como seu pai. Porém, o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) veio, agora, validar uma lei portuguesa há muito contestada: o reconhecimento de paternidade tem de ser requerido no prazo de dez anos após o filho atingir a maioridade e se este período for ultrapassado o alegado progenitor pode recusar o teste de ADN. E Abel continua filho de pai incógnito.
Quando Abel nasceu, em 1965, foi registado com o nome da mãe e daquele que era o seu marido. Contudo, dois anos depois, o registo foi alterado na sequência de um processo civil em que o homem contestou a paternidade e o menino passou a ser filho de pai incógnito.
E assim permaneceu até 2015, ano em que a mãe morreu e uma tia acabou por lhe revelar qual era o nome do pai. Aos 50 anos, Abel avançou com uma ação judicial para exigir um teste de paternidade a um indivíduo que, alegadamente, teria tido um relacionamento amoroso com a sua mãe antes e após o seu nascimento.
O visado, que tinha já celebrado 75 anos quando foi notificado com o pedido, negou qualquer ligação a Abel e manteve-se intransigente na recusa de realizar o teste de paternidade. Mesmo assim, em maio de 2017, o Tribunal de Família e Menores do Porto deu como certo que o septuagenário era, efetivamente, o progenitor procurado, justificando a decisão com testemunhos e a rejeição do teste. O Tribunal da Relação do Porto, já em 2019, confirmaria a sentença, mas um segundo recurso intentado pelo septuagenário mudaria tudo. No final de 2020, o Supremo Tribunal de Justiça anulou as decisões anteriores com base em dois argumentos. Primeiro, não tinha ficado provado que Abel apenas tinha tido conhecimento da identidade do pai através da revelação feita pela tia. Segundo, o pedido de paternidade fora apresentado fora do prazo, uma vez que a lei portuguesa impõe que este tipo de reclamação tem de ser formalizado 10 anos após o interessado atingir a maioridade.
Demasiado tempo
Segundo os juízes conselheiros, Abel G. deveria ter recorrido aos tribunais antes de ter feito os 28 anos, mas o argumento não foi suficiente para o deixar convencido nem abrandar a sua determinação. O filho de pai incógnito apresentou uma queixa no TEDH contra o Estado português, porque, frisava, o acórdão do Supremo Tribunal Judicial violava a convenção europeia.
Tese que, no mês passado, os juízes europeus declinaram. “O TEDH observa que o requerente, tendo atingido a idade de 50 anos quando intentou uma ação cível de reconhecimento da paternidade contra A.F., então com 75 anos, demonstrou falta de diligência na instauração de tal ação, tendo levado muitos anos após ter atingido a maioridade a procurar que a sua paternidade fosse legalmente estabelecida”, lê-se no acórdão.
Os juízes europeus defendem, ainda, que “a justificação do requerente para este atraso não foi estabelecida como um facto provado” e, nesse contexto, Abel G. “não demonstrou a existência de circunstâncias que o impediram de atuar mais cedo”.
Prazo chegou a ser considerado inconstitucional
A discussão sobre o prazo para requerer o reconhecimento da paternidade é antiga e tem vários episódios. Um dos últimos teve lugar em abril de 2019, quando o Tribunal Constitucional, a propósito de um caso concreto, considerou o direito dos filhos de pai incógnito a verem investigada e reconhecida a sua paternidade, em qualquer momento da sua vida. Em suma, declarou inconstitucional a atual lei que impõe um prazo de caducidade para alguém saber a identidade dos pais.
A relatora desse acórdão foi Maria Clara Sottomayor que, então, defendeu, que “tal prazo constitui uma restrição desproporcionada dos direitos fundamentais a constituir família, à identidade pessoal e ao livre desenvolvimento da personalidade, bem como do direito a conhecer a ascendência biológica e a ver estabelecidos os correspondentes vínculos jurídicos de filiação”.
Esta posição vingaria por pouco tempo. Na sequência do recurso apresentado pelo Ministério Público, a decisão foi analisada pelo Plenário do Tribunal Constitucional e, no final da votação, oito dos 13 juízes que integravam aquele órgão mostraram-se contra o acórdão em análise. Na prática, o prazo máximo de dez anos para requerer o reconhecimento de paternidade manteve-se como limite para iniciar qualquer processo.
Além de Maria Clara Sottomayor, que manteve a posição assumida no primeiro acórdão, também o juiz conselheiro que presidia ao Plenário do Tribunal Constitucional, Manuel Costa Andrade, votou contra. Na declaração de voto, Costa Andrade afirmou que saía do processo “com a crença reforçada da inconstitucionalidade de qualquer norma que estabeleça um qualquer prazo de caducidade para a instauração da ação de investigação da paternidade”.
Quatro anos após esta declaração, a lei mantém-se inalterável.