Manifestação contra a violência policial. "Não precisam de gostar de mim, mas têm de me respeitar"
Morte de Odair Moniz juntou milhares contra o racismo e a violência policial. Contramanifestação de Ventura atraiu poucas centenas. Não houve incidentes.
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O silêncio que, de repente, cobre de solenidade a Praça dos Restauradores, em Lisboa, é quase arrepiante: sob a imponência do obelisco à liberdade transformado por uma tarde em altar de homenagem a Odair Moniz, uma multidão de pessoas negras e brancas interrompe por um minuto as palavras de ordem para, numa espécie de catarse coletiva, lembrar o homem de 43 anos que, na última segunda-feira, foi morto por um agente da PSP, na Amadora. Alguns erguem o punho, de rosto fechado. Outros fixam o olhar no chão.
Cinco dias depois da morte a tiro de Odair Moniz, milhares de pessoas desceram neste sábado a Avenida da Liberdade sob o mote “sem justiça não há paz”, ao mesmo tempo que 200 a 300 pessoas marcharam em direção à Assembleia da República “em defesa da Polícia”, sem qualquer incidente.
Na primeira, convocada pelo movimento Vida Justa, quem por ela passa tem dificuldade em descortinar quem lidera. Na segunda, promovida pelo Chega, o difícil é mesmo ignorar que quem inspira os manifestantes é o líder do partido, tal a sucessão de cânticos a elogiar André Ventura, por entre palavras de apoio incondicional à Polícia e gritos nacionalistas e contra os “bandidos”. Em ambas, há quem, algo inesperadamente, creia estar a manifestar-se contra o racismo.
“Já chega, basta”
“Estou aqui contra o racismo”, garante, de bandeira de Portugal e um cartaz a pedir respeito pelas Polícias, Maria, professora reformada que, sem querer revelar o apelido, aguarda na Praça do Município o início do desfile encabeçado por André Ventura.
Invocando um dia em que acredita ter tido pessoas negras a passar à sua frente numa fila para almoçar, a idosa reproduz a retórica da extrema-direita de que o racismo que existe é contra brancos. A certeza esvanece-se quando o JN pergunta por situações concretas em que se tenha sentido ameaçada. “Claro que já passei para o outro lado do passeio”, acaba por dizer, insistindo que está presente apenas apenas para “defender” Portugal.
Na Avenida da Liberdade, Vanídea Mendes, mulher africana e portuguesa, é bastante mais espontânea a explicar a dificuldade de ser negra no seu próprio país. Ao JN, recorda as mulheres que, como Cláudia Simões, detida violentamente numa paragem de autocarro na Amadora, são “agredidas, humilhadas”, e os homens que, como Odair Moniz, “são abatidos, deitados no chão”.
“Já chega, basta. O chega é isto, não é o que pensam que é. Isto é que é o chega, isto é que é o basta. Têm de nos ouvir, têm de nos respeitar. Não precisam de gostar de mim, mas têm de me respeitar”, atira, sem deixar de condenar os tumultos que se seguiram na Área Metropolitana de Lisboa a seguir à morte de Odair Moniz. “Não é certo, mas é a forma que têm de comunicar”, remata.
Ventura pede “verdadeira revolução”
Na contramanifestação do Chega, que só não se cruzou com a da Vida Justa porque o movimento alterou o percurso à última da hora, também há quem não se manifeste apenas por tudo o que se tem passado desde a madrugada de segunda-feira. É o caso de Marcos Santos, comercial de 35 anos, e Patrícia Amorim, esteticista de 39, naturais do Porto e de Viana do Castelo e atualmente residentes na Amadora.
Embora reconheçam que nunca se sentiram ameaçados e tenham já assistido a algumas “rusgas” no concelho limítrofe de Lisboa, sentem que os polícias “não podem fazer nada” para manter a segurança dos territórios.
“É mandá-los para um matadouro”, defende Marcos Santos, enquanto Patrícia Amorim sugere que, como noutros países, os polícias possam ter tasers e câmaras corporais. Sobre a morte de Odair Moniz, preferem esperar pelo que vier a ser apurado em tribunal. “Não estamos a falar só neste caso”, frisam.
Aquela moderação contrasta com o modo como, se de um comício se tratasse, Ventura apela, à chegada ao Parlamento, à “verdadeira revolução”, perante uma plateia reduzida mas em apoteose, convicta de que não vive num país livre, destruído pelos 50 anos de democracia.
Já Luís Baptista, do Vida Justa, pede que se acabe com legislação que permite à Polícia atuar de uma forma diferente em bairros desfavorecidos. E propõe, para que a contestação desça de tom, a resolução dos “problemas da habitação” e da “falta de transportes públicos”.