Individualidades apontam morosidade, abusos e cultura de desresponsabilização como principais problemas do Ministério Público para pedir intervenção.
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Um “sobressalto cívico”. É com esta máxima que 50 figuras de vários quadrantes políticos, incluindo ex-governantes, académicos, jornalistas, médicos e cientistas, pedem ao presidente da República, ao Parlamento e aos partidos uma reforma urgente na Justiça e em particular no Ministério Público (MP), acusado de ser demasiado moroso, opaco e até abusador. Rui Rio, Maria de Lurdes Rodrigues e Augusto Santos Silva estão entre os principais signatários e impulsionadores do manifesto, lançado a propósito dos 50 anos do 25 de Abril.
Garantindo quererem uma efetiva separação entre o poder político e a Justiça, os subscritores tecem duras críticas ao Ministério Público, acusado de ter interferido na soberania política. “A prolongada passividade perante esta iníqua realidade permitiu que tivéssemos atingido o penoso limite de ver a ação do Ministério Público gerar a queda de duas maiorias parlamentares resultantes de eleições recentes, apesar de, em ambos os casos, logo na sua primeira intervenção, os tribunais não terem dado provimento e terem mesmo contrariado a narrativa do acusador”, lê-se no documento, a que o JN teve acesso.
Com as investigações dos casos Influencer e Madeira como pano de fundo, os signatários também apontam baterias ao facto de, passados cinco meses sobre a demissão de António Costa, o MP ainda não ter informado o ex-primeiro-ministro sobre o objeto do inquérito, nem o ter convocado para prestar esclarecimentos. “Além de consubstanciarem uma indevida interferência no poder político, estes episódios também não são conformes às exigências do Estado de direito democrático”, garantem.
“Graves abusos”
Os subscritores acusam o titular da investigação criminal de cometer “graves abusos” pelo facto de usar métodos de obtenção de prova contrários aos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, por exemplo com “a proliferação de escutas telefónicas prolongadas, de buscas domiciliárias injustificadas e, mesmo, de detenções preventivas precipitadas e de duvidosa legalidade”.
As violações de segredo de justiça, com “montagens do já habitual espetáculo mediático, nas intervenções do Ministério Público contra agentes políticos”, vão, de acordo com o manifesto, “a par da colocação cirúrgica de notícias sobre investigações em curso”. Para os signatários, esta associação está a provocar, junto da opinião pública, a ideia de que “todos os políticos são corruptos”, criando um sentimento de presunção de culpabilidade.
“Este procedimento torna-se ainda mais crítico quando os resultados práticos do combate à corrupção em Portugal se reduzem normalmente a um preocupante insucesso e a uma manifesta incapacidade de combater tão grave fenómeno, por quem tem a especial responsabilidade de o fazer”, aponta ainda o manifesto.
Corporativismo
Os signatários acusam o MP de atuar com opacidade e de nunca ser responsabilizado por erros. A “Justiça funciona quase inteiramente à margem de qualquer escrutínio ou responsabilidade democráticos”, garantem, e por isso, pedem que o MP volte a ser gerido com um modelo e funcionamento hierárquico, tendo como vértice a figura do procurador-geral da República.
Os procuradores “têm, na prática, um poder sem controlo, quer externa, quer internamente, desde logo, pela assumida desresponsabilização da procuradora-geral da República pelas investigações”, asseguram.
“É um ato de pressão saudável e democrática”
Rui Rio, ex-presidente do PSD e subscritor do manifesto
O ex-presidente do PSD que, pelo menos desde 2018, quer implementar uma reforma estrutural da Justiça, é um dos principais subscritores do manifesto. Aponta como uma das principais falhas a morosidade das decisões judiciais. “Não é só na justiça penal, que umas vezes é morosa e outras vezes não é. Mas, por exemplo, na justiça administrativa, onde facilmente uma sentença demora 20 anos a transitar em julgado”, critica. Entende, por isso, ser este o momento para promover “um sobressalto cívico”, que se pode traduzir “numa pressão saudável e democrática sobre os órgãos de soberania”, para reformar a Justiça.
Apatia do poder político
Ao JN, Rui Rio explicou que esta iniciativa nasceu de um conjunto de personalidades motivadas por duas grandes razões. “É o maior problema que o regime tem e, portanto, faz sentido que, na altura dos 50 anos do 25 de Abril se aborde este problema. Depois, nós todos temos consciência, e está lá no manifesto, que tem havido uma apatia para assumir uma reforma a sério da justiça”, afirmou.
O ex-líder do PSD, que é um dos críticos da postura da procuradora-geral da República nos casos Influencer e da Madeira, diz que “o nível de eficácia do combate à corrupção tem muito espetáculo, muito dano, mas tem pouco resultado prático depois, em termos de julgamentos e condenações”.
"A autonomia do MP também é conquista de Abril"
Paulo Lona, presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público
Quem contesta as críticas e argumentos invocados no manifesto é o Sindicato dos Magistrados do Ministério Público (SMMP), que recusa a necessidade de uma maior fiscalização da atuação dos procuradores. “O manifesto assenta em preconceitos sobre a atividade do MP e juízos de valor relativos a dois processos cuja investigação se encontra pendente, um que ainda aguarda a decisão de recurso apresentado pelo MP”, diz Paulo Lona, presidente do SMMP.
O dirigente sindical entende que o que se procura é “forçar alterações legislativas a reboque de dois processos concretos, atacando o papel legal e constitucional do MP, a sua autonomia e, por essa via, o próprio sistema de justiça, ignorando as recomendações europeias nesta matéria”.
Credibilizar instituições
Para o sindicato, mais importante do que procurar reformar a Justiça, “é credibilizar as instituições num estado de direito democrático e não atacar a independência do sistema de justiça, nomeadamente através da autonomia do MP”, diz Paulo Lona, que exclui a existência de uma justiça independente sem autonomia do MP.
“E sem um sistema de justiça independente não temos um verdadeiro estado de direito democrático. A independência da justiça e a autonomia do MP também são conquistas de Abril e da democracia”, finalizou.