Um recluso assistiu a uma violenta agressão no interior da cadeia, em Coimbra. Foi inquirido pela PSP mas teve medo das represálias e recusou-se a identificar o agressor, porque "a vida de um rato não tem qualquer valor no meio prisional".
Corpo do artigo
O argumento de "legítima defesa" para não depor não convenceu nem os juízes do tribunal de primeira instância, nem os do Tribunal da Relação de Coimbra.
Apesar de reconhecerem "dificuldades acrescidas" na vivência no interior de uma cadeia, os magistrados consideraram que o temor pela sua integridade física e até pela própria vida não constituía "uma justa causa". O homem acabou condenado a 21 meses de prisão pelo crime de falsidade de testemunho.
O arguido, a cumprir pena no Estabelecimento Prisional (EP) de Coimbra, negou-se a depor num caso de ofensa à integridade física contra outro recluso. Argumentou que, caso testemunhasse, estaria a pôr em risco a própria vida e manteve-se em silêncio para sua própria proteção. A justificação não colheu. Para os juízes desembargadores, a invocação de ter de se proteger "não legitima (justifica) a referida omissão", lê-se no acórdão do Tribunal da Relação.
A 14 de maio de 2018, o arguido fora apresentado à PSP para prestar declarações num processo de ofensa à integridade física. O homem terá presenciado as agressões mas recusou-se a testemunhar. Apesar de ter sido repetidamente alertado de que poderia incorrer em responsabilidade penal caso persistisse na recusa, o arguido disse que não se importava, frisando que só ali estava porque era "obrigado".
Após ter sido condenado em primeira instância, o recluso recorreu, explicando que se recusou a "delatar" para se proteger. "A vida de um rato não tem qualquer valor no meio prisional" e a denúncia de um companheiro seria motivo para atentar contra a sua vida, alegou no recurso para a Relação.
Vida pesa mais do que a justiça
Segundo a defesa, o objetivo da realização da justiça, que teria ficado comprometido com o silêncio do arguido, não se pode sobrepor nem ter o mesmo peso que o bem jurídico da vida. A "necessidade de proteger o seu bem maior que é a sua vida" seria causa mais do que suficiente para afastar a culpa do arguido e justificar o seu silêncio, alegou.
"Qualquer pessoa que preze a sua vida e que tenha amor-próprio faria o mesmo. Isto é, recusaria delatar sobre o que fosse relativamente a um acontecimento verificado no interior de um EP, sabendo que ao fazê-lo estaria a pôr em risco a sua própria vida", justificava o recurso.
A Relação não partilhou deste entendimento. Os desembargadores reconhecem "dificuldades acrescidas na vivência" no interior de uma cadeia, "designadamente quanto aos diferendos que se podem gerar". E admitem a existência de casos, além dos já expressamente previstos na lei, que justifiquem a recusa para depor.
Porém, a proteção de represálias, muito menos alegando o "exercício de legítima defesa", "não é certamente" um desses casos. Até porque, prossegue o acórdão, se esta tese vingasse, os crimes nos EP nunca poderiam contar com o testemunho de um recluso pois poderia sempre haver um potencial risco para a sua integridade física ou mesmo para a sua vida.
O crime
Falsidade e recusa
O Código Penal considera que comete crime contra a realização da Justiça tanto quem presta depoimento, apresenta relatório, dá informações ou faz traduções falsas como quem, sem justa causa, se recusa a depor ou a apresentar relatório, informação ou tradução.
Agravado após jurar
A pena para o crime de falsidade de testemunho vai dos seis meses aos três anos de prisão ou multa não inferior a 60 dias. Se o crime for praticado após a pessoa ter prestado juramento e sido advertida das consequências penais, a pena será de prisão até cinco anos ou de multa até 600 dias.