Ninguém impediu assassinato de mulher agredida durante seis anos pelo companheiro
Uma mulher, de 43 anos, foi asfixiada até à morte depois de seis anos a ser insultada, agredida, atirada contra a paredes e fechada em casa pelo companheiro, um ano mais velho. Muitas vezes em frente ao filho.
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Ao longo deste período, a família foi acompanhada pela Segurança Social, pela comissão de proteção de crianças e jovens (CCPJ) e por médicos. Também a PSP e o Ministério Público (MP) tiveram contacto com o caso, mas nenhuma destas entidades fez tudo o que podia para impedir o homicídio.
A conclusão é da Equipa de Análise Retrospetiva de Homicídio em Violência Doméstica (EARHVD) que, num relatório publicado nesta quarta-feira, sugere a todas estas organizações “uma articulação efetiva e abrangente, de forma a permitir um olhar holístico, pluridisciplinar e complementar, o que se poderá vir a traduzir numa intervenção mais eficiente”.
Seis anos de inferno
Maria iniciou uma relação amorosa com Manuel em 2003 e, no ano seguinte, foram pais de João (todos os nomes são fictícios). Mas nunca houve paz no seio de uma família disfuncional, com os membros do casal desempregados e com problemas do foro psicológico. Desde o início, sucederam-se os insultos e as agressões de Manuel a Maria, que era atacada à chapada e a murro, mas também atirada ao chão e contra a parede. Um desses episódios violentos teve lugar à hora do jantar da véspera de Natal de 2017, com o filho do casal na habitação.
Três dias depois, Maria apresentou queixa na PSP por violência doméstica, foi sujeita a uma avaliação que concluiu que o seu nível de risco era “médio” e voltou para casa. No início de abril, voltou a denunciar as agressões sofridas e, desta vez, foi acolhida numa casa abrigo, com o filho.
A estadia estendeu-se até 31de maio, dia em que informou as técnicas que iria reatar a relação com o companheiro e regressou à casa que continuou a ser palco de violência. Chegou a ser empurrada contra uma parede e, no final de junho, durante a noite, o agressor levantou o colchão para a atirar ao chão e desferir-lhe um soco na boca. Atos que justificaram um segundo processo por violência doméstica.
Manda filho às compras para matar a mãe
Contudo, dois meses depois, a vítima recusou prestar depoimento na PSP e aceitou a suspensão provisória do processo proposta pelo MP. Ainda em setembro, a PSP recebeu nova denúncia e, no mês seguinte, voltou a ser chamada a casa do casal. Em fevereiro de 2018, Maria esteve internada quase um mês num hospital psiquiátrico, na sequência de pensamentos suicidas, mas voltaria para uma vida de insultos e agressões diárias até ir às urgências hospitalares em 12 de junho de 2019.
Quando voltou à habitação foi atacada com um murro na cara que a fez desmaiar e, na manhã do dia seguinte, seria assassinada.
O filho do casal acordou com os gritos da mãe a ser agredida pelo pai e quando chegou junto deles, o progenitor deu-lhe uma lista de compras e mandou-o ir ao supermercado. Mal o adolescente, de 15 anos, saiu da residência, o desempregado agarrou-se ao pescoço da companheira e asfixiou-a.
Todos falharam
Durante os seis anos de relacionamento, a família beneficiou de Rendimento Social de Inserção, foi seguida pela Segurança Social e, a partir de maio de 2019, pelo Centro de Apoio Familiar e Aconselhamento Parental.
Devido ao absentismo escolar do filho, que era alvo de negligência ao nível da higiene corporal, também a CPCJ acompanhou este agregado, o mesmo sucedendo, fruto das queixas por violência doméstica, com a PSP e o MP. Porém, refere a EARHVD, “verificou-se a ausência de articulação entre as diferentes instituições/serviços que acompanharam o agregado familiar ao longo dos anos, o que impediu uma avaliação e uma intervenção integrada e pluridisciplinar”.
“Os serviços de saúde, apesar de diversas ocorrências [de Maria] com recurso aos mesmos, tendo sido uma delas por agressão em outubro de 2017, não diligenciaram nem efetuaram a avaliação de risco de violência doméstica, nem procederam ao encaminhamento/referenciação para a EPVA, resposta estruturada da saúde”, criticam também os técnicos.
Processo suspenso sem “esclarecimento cabal”
Segundo estes, “constatou-se que por parte dos órgãos de polícia criminal foi efetuado o acompanhamento das várias ocorrências, havendo especial preocupação com a sinalização do filho à CPCJ, mas com imprecisa avaliação de risco das vítimas, por não ter havido recurso a outras fontes de informação para além das declarações das vítimas, em cada momento de avaliação”.
“No primeiro processo/inquérito criminal por crime de violência doméstica, a decisão de suspensão provisória do processo, tomada em fase de instrução, não foi precedida de esclarecimento cabal e presencial perante a vítima , a ser efetuada pelo magistrado titular”, aponta ainda a EARHVD.
Por fim, a equipa realça que, “apesar das diversas sinalizações por diferentes entidades, a CPCJ teve uma intervenção temporal muito limitada e escassa na proteção do [filho do casal]”. “Embora considerasse que a criança se encontrava em perigo, nunca procedeu à sua audição individualizada”, finaliza o relatório.