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Tenho pensado, ao entrarmos na corrida atropelada de Dezembro e do Natal, do barulho das luzes e do buzinar colorido dos carros detidos nas rotundas por excesso de afluência, as lojas a chamarem-nos nos passeios como se fôssemos da família, os centros comerciais inchados de plásticos vermelhos, os anúncios lamechas na TV, as vedetas nos cartazes vestidas de peluche, os sininhos e os sinões a dobrarem, os velhos gordos de barba engasgados com ho-ho-hos... tenho pensado, repito, se isto é alegria se é angústia.
Dizia um amigo meu, ao ver alguém de pensamentos perdidos na atmosfera:
- Estás outra vez com falta de carências?
Li há pouco um jornal, velho de quase uma semana, que diz que o CEO de uma empresa dona de 15 marcas internacionais de automóveis, um português pelos vistos mais importante do que Vasco da Gama, um tal Tavares, dono de boa parte do mundo, se afastou, ou melhor, foi afastado, escorraçado deste inacreditável cargo pelo seu próprio lema: quem não tem sucesso deve morrer, ou desaparecer, ou coisa que o valha. De maneira que lá vai o pobre excedentário atravessar antes do tempo a douradíssima reforma de milhões, milhões, milhões, ruminando no que é que lhe correu mal neste mundo híbrido e eléctrico que não larga o diesel.
Mas se uns terminam a carreira, outros começam-na, e estou a pensar no que andará a fazer a esta hora o jovem Nuno. Na primeira sessão do tribunal esteve sempre calado, só disse o nome e a morada. Pouco se avançou naquela manhã porque os guardas não apareceram derivado, como se diz agora, a uma greve. Mas na segunda sessão, dias depois, ficámos a saber que o jovem Nuno estava a meter-se em sarilhos graves. Um guarda descreveu como o apanhara numa esquina na posse de várias embalagens de cor branca, todas mais ou menos da mesma forma, pequenas doses enroladas. Quando viu a polícia, tentou desenvencilhar-se, atirando fora as embalagens e um frasquinho com um líquido que, disse o laboratório da polícia, servia para dissolver, cortar cocaína pura e misturá-la com porcarias para depois vender em mais quantidade. O quadro era mau para o jovem Nuno mas, disse o guarda:
- Nós acreditamos que era a primeira vez que se encontrava lá, naquele local, não tínhamos referência de outra presença sua.
Até pela forma desastrada como fora apanhado, era possível que Nuno fosse principiante naquele, por assim dizer, emprego de pequeno traficante de rua. Além dos estupefacientes, tinha apenas uma nota de cinco euros e moedas nas calças, disse também o guarda. A procuradora, nas alegações, lembrou ser crime de tráfico de menor gravidade, que Nuno está social e familiarmente integrado, pediu uma pena de suspensão e disse:
- Era, e é muito jovem.
Era verdade. Nuno pediu a palavra. Disse que nunca tinha feito aquilo de cortar cocaína, nem sabia que produto era aquele de que falava o processo. Então a juíza sorriu:
- Na primeira sessão, o senhor Nuno ia a uma entrevista de emprego quando saiu daqui. Sempre ficou?
- Fiquei!, disse Nuno, os dentes rebrilhando como neve sintética nas montras.
- Ah, ainda bem, suspirou a juíza.
Feliz Natal, jovem Nuno e família.