O tráfico de haxixe e a proximidade ao Norte de África: "Estamos expostos à ameaça"
Entrevista do JN a Artur Vaz, diretor da Unidade Nacional de Combate ao Tráfico de Estupefacientes da Polícia Judiciária.
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O tráfico de haxixe de Marrocos para a Península Ibérica e, sobretudo, para a costa portuguesa está a aumentar?
Aquilo que vimos assistindo não é, infelizmente, um fenómeno novo, nem recente. Ao longo dos últimos anos, distintas organizações criminosas traficam estupefacientes, no caso haxixe, entre o Norte de África, que é o local da sua produção, e o continente europeu, que é um dos principais mercados consumidores deste tipo de droga. E frequentemente fazem-no através da Península Ibérica. Há rotas que são mais ou menos utilizadas pelas redes de traficantes, que se vão adaptando àquilo que são as realidades e às estratégias das forças policiais, a nível europeu. O território português é muito próximo da costa do Norte de África e, por esse motivo, estamos expostos a essa ameaça.
Mas podemos falar de maiores quantidades apreendidas?
Não. No entanto, as quantidades apreendidas no ano passado são muito significativas. A estratégia que temos vindo a desenvolver, em articulação com a Marinha e a Força Aérea, tem possibilitado que até em águas internacionais se possa proceder a apreensões, mesmo que não estivesse nos planos das organizações criminosas que essa droga entrasse na Europa através de Portugal.
Ao JN, o Chefe do Estado-Maior da Armada, almirante Gouveia e Melo, admitiu que a Marinha reforçou a vigilância da costa sul portuguesa devido ao tráfico de haxixe? A PJ também reforçou os meios no combate a este crime?
A PJ, tal como todas as autoridades policiais, tem de estar num processo de permanente adaptação àquilo que é a realidade, para poder responder da forma mais eficaz e rápida possível. Portanto, estamos permanentemente atentos à informação que vai sendo possível recolher e que nos vai dando indicações, muitas vezes muito preciosas, sobre rotas, modus operandi, formas de adaptação destas estruturas criminosas, que são verdadeiras multinacionais do crime.
Multinacionais do crime socorrem-se com muita frequência das lanchas rápidas
Como é que o haxixe chega à Europa?
A grande zona produtora deste tipo de droga é o Norte de África e, para chegar à Europa, tem que ser transportada. Existindo o oceano Atlântico, e o mar Mediterrâneo pelo meio, o normal é a droga ser transportada por via marítima. Tendo em conta a proximidade geográfica entre o Norte de África e a Península Ibérica, estas organizações criminosas que, repito, são verdadeiras multinacionais do crime, socorrem-se com muita frequência das lanchas rápidas. São meios que, muito rapidamente, conseguem percorrer a distância entre a Península Ibérica e o Norte de África e regressar com quantidades muito significativas de droga, o que dificulta a intervenção das autoridades.
O método é sempre o mesmo?
Há uma multiplicidade de modus operandi. Nalguns casos, uma embarcação sai da Península Ibérica, vai ao Norte de África e regressa para descarregar a droga na costa. Noutros casos, são feitos transbordos para outras embarcações. Tudo depende daquilo que são os meios e as oportunidades das organizações criminosas.
Como é que se combate este crime?
Temos de ter uma atuação conjugada e, no combate à tráfico de drogas em Portugal, temos instrumentos legislativos que nos dão orientações muito precisas e que definem muito bem aqueles que são os papéis dos vários órgãos de polícia criminal em matéria não só de fiscalização e de prevenção, mas também de investigação criminal. Este quadro legislativo parte do princípio da partilha de meios, da coordenação, da interação e da cooperação entre as várias entidades. A cooperação com autoridades de outros países é também absolutamente indispensável, porque estamos a falar de organizações que atuam em vários países, que têm pontos de apoio em vários países, que compram a droga num determinado país, transportam-na através de outro e vendem-na noutros. Se não ocorrer uma ação concertada, nunca conseguiremos produzir investigações e ações de prevenção e de repressão que sejam eficazes.
Cooperação com Marrocos "carece de aprofundamento"
Como decorre a articulação internacional?
Há muita cooperação bilateral, e trabalhamos muito frequentemente com os colegas espanhóis, franceses e da generalidade dos países europeus e da América. Existem, igualmente, diversas plataformas e organismos que potenciam e promovem essa cooperação. Podemos falar da Interpol e da Europol, que tem um papel cada vez mais relevante no apoio às autoridades policiais dos vários estados-membros, não só no apoio operacional, mas também ao nível de análise e da troca de informação. O Maritime Analysis and Operations Centre - Narcotics (MAOC) também é uma importante plataforma, com elementos dos vários países, onde, de uma forma muito estreita e à mesma mesa, é partilhada informação viva sobre as investigações que estão a decorrer. Essa fusão e troca de informação tem permitido excelentes resultados no domínio do combate ao tráfico por via marítima, embora o MAOC tenha também mandato para trabalhar na área do combate ao tráfico de drogas por via aérea.
E qual tem sido o papel de Marrocos na partilha de informação?
Referi o Norte de África, embora seja público que a produção [de haxixe] se concentra no reino de Marrocos. A cooperação tem vindo a ser desenvolvida e carece, naturalmente, de aprofundamento.
Que "multinacionais do crime" são estas que se dedicam ao tráfico de haxixe?
São grupos criminosos, normalmente compostos por indivíduos de diversas nacionalidades e que, por vezes, integram indivíduos de nacionalidade portuguesa que, essencialmente, prestam algum apoio logístico.
Há relatórios que apontam para a predominância de traficantes espanhóis. Isto é verdade?
Notamos nas investigações que existe um número expressivo de indivíduos de nacionalidade espanhola e marroquina a integrar estes grupos. Existem também indivíduos portugueses que, por vezes, dão apoio logístico. Os grupos são constituídos por indivíduos com diferentes nacionalidades que, naturalmente, têm conhecimentos que lhes permitem, depois, contactos e influência em diversos países.
São organizações que atuam globalmente?
No caso do tráfico de haxixe, não diria que atuam a nível global, antes a um nível regional. Estamos a falar de um tráfico, essencialmente, entre o Norte de África e a Europa, sendo certo que, nos últimos anos, temos tido também situações em que verifica o transporte de haxixe para a América do Sul, nomeadamente para o Brasil, onde alguma informação indica que poderá existir um consumo crescente.
Temos constatado um crescendo de violência e de outro tipo de criminalidade associada ao tráfico de estupefacientes
Os traficantes de haxixe também se dedicam ao tráfico de migrantes?
Não quero dizer que não possa existir, porque naturalmente a PJ não está na posse de toda a informação, mas não temos tido sinais consistentes que nos indiquem que as organizações que se dedicam ao tráfico ilícito de drogas, no caso de haxixe, utilizem a estrutura que possuem para o tráfico de migrantes.
Os traficantes de haxixe têm um poder financeiro, que lhes permite adquirir lanchas acima de meio milhão de euros?
Sim, naturalmente. Não sei se o valor das lanchas é de meio milhão, mas posso dizer que são meios muito caros e que, apesar de todas as apreensões feitas, estas organizações, enquanto não são completamente desarticuladas, têm a capacidade para adquirirem outras e as colocarem em funcionamento.
São grupos que estão cada vez mais violentos?
Temos constatado, na União Europeia e um pouco também em Portugal, um crescendo de violência e de outro tipo de criminalidade associada ao tráfico de estupefacientes. Estamos a falar de crimes contra as pessoas e do branqueamento dos lucros gerados por esta atividade que, de facto, quando tem sucesso, gera enormes volumes de dinheiro. E também [temos] a corrupção, quer no setor público, quer no setor privado. Este tipo de grupos procura sempre ter apoio a vários níveis, de forma a facilitar e conferir segurança às suas atividades ilícitas. É um fenómeno ao qual temos que estar muito, mas muito atentos, porque de facto o tráfico de drogas tem esta capacidade de gerar outro tipo de criminalidade.
Podemos assistir em Portugal, aquilo que temos visto nos Países Baixos e na Bélgica, onde os traficantes já não têm receio de atacar entidades policiais e políticas?
Temos a perceção clara do aumento desse tipo de crimes violentos, mas que não atingem, nem de perto nem de longe, os índices e a gravidade de outros países, nomeadamente países europeus.
Não está em curso uma luta pelo domínio do território, entre diversas organizações que se dedicam ao tráfico de drogas?
Neste tipo de tráfico, não. Estas organizações procuram ter meios e facilidades para fazer chegar este tipo de estupefaciente a todos os mercados consumidores. Muitas vezes, essa luta pelo domínio dos territórios é mais ao nível daquilo que é a distribuição e a venda a retalho desse tipo de drogas.
Espanha com atuação mais "musculada"
Os portugueses estão mais envolvidos na venda de haxixe ao consumidor?
Muitas quantidades [de haxixe] poderão entrar por Portugal, mas, por regra, são escoadas para outros países europeus, onde há maiores índices de consumo e o número de consumidores é muitíssimo maior. Quando falamos de abastecimento dos circuitos ilícitos de distribuição aos consumidores no nosso país, com certeza que há alguma droga, que vem por via marítima e também por via terrestre do Norte da África, que é distribuída internamente. Há grupos que têm a capacidade de ir à origem buscar, em quantidades médias, a droga. Há outros que compram a diferentes traficantes e, depois, fazem a distribuição a nível nacional, regional e local.
Os espanhóis incidiram, nos últimos anos, a fiscalização no Estreito de Gibraltar. Essa medida fez deslocar as rotas de tráfico para a costa portuguesa?
Quando há uma maior fiscalização num determinado local é natural que os agentes do crime procurem novas rotas. Isto é uma espécie de jogo do gato e do rato. As autoridades espanholas criaram até um plano especial para o campo de Gibraltar, precisamente para atacar de uma forma mais musculada o tráfico que estava a ser canalizado através daquela zona, e notou-se [a deslocalização das rotas] para o Golfo de Cádis, o que, de alguma forma, acabou por afetar a costa portuguesa.
Portugal também devia implementar um plano especial de combate ao tráfico de haxixe?
É evidente que podemos sempre fazer melhor, mas estamos a falar de realidades completamente diferentes. Aquilo que há necessidade é de melhorarmos no dia-a-dia, o nosso desempenho, a articulação, a capacidade de fazermos melhor com o que temos e de otimizarmos todos os recursos.
Os cartéis espanhóis estão a transferir a produção de lanchas rápidas para Portugal?
Temos vindo a assistir, essencialmente a partir do segundo semestre de 2019, a um aumento do movimento deste tipo de lanchas através do território nacional. Na nossa análise, isso resultará, essencialmente, da entrada em vigor de legislação específica em Espanha, que veio criminalizar a posse, o transporte, a guarda, a produção deste tipo de embarcações, quando não sejam destinadas ou registadas para fim lícito. Em função disso, notamos, de facto, uma certa deslocalização deste tipo de atividades para território nacional.
Essa deslocalização representa um perigo para o país?
O facto desses grupos virem para aqui guardarem e produzirem as lanchas, e por vezes também as colocarem em água [a partir da costa portuguesa], não significa que essas embarcações sejam utilizadas no transporte de droga para território nacional. Elas são utilizadas no transporte para outros locais, nomeadamente da Península Ibérica.
Para combater esse fenómeno, era importante que Portugal aproximasse a legislação da qual já existe em Espanha?
É um assunto que está em análise.
A PJ tem os recursos necessários para combater grupos criminosos com um poder financeiro cada vez maior?
Nunca temos os recursos ideais e nem sei se algum dia teremos. Aquilo que é público e assumido pela Polícia Judiciária, é que existe uma necessidade de reforço, nomeadamente de recursos humanos. Por isso, nos últimos anos, têm sido abertos diversos procedimentos concursais para a contratação de funcionários, das mais diversas áreas, nomeadamente pessoal de investigação criminal. E na área do combate ao tráfico necessitamos de reforçar aquilo que é o nosso músculo, os nossos recursos humanos.