Segunda sessão do julgamento pela morte do cidadão cabo-verdiano, atingido a tiro por um agente da PSP na Cova da Moura, ficou marcada por contradições nos depoimentos e dúvidas sobre o que realmente aconteceu na noite de 21 de outubro de 2024.
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Duas testemunhas do momento em que Odair Moniz, de 43 anos, foi morto a tiro por um agente da PSP na Cova da Moura, Amadora, asseguraram esta quarta-feira, no Tribunal de Sintra, que o cidadão cabo-verdiano "não tinha nada na mão" quando foi atingido. Os depoimentos, prestados na segunda sessão do julgamento do agente Bruno Pinto, de 28 anos, foram, no entanto, marcados por contradições e dúvidas levantadas pelo coletivo de juízes.
"Odair não tinha nada na mão"
Evandro Duarte, de 21 anos, contou que estava perto do local quando ouviu "um estrondo" que pensou ser "um acidente entre viaturas". "Vi o Odair a sair da viatura e a levantar os braços e os dois agentes a tentarem atirá-lo ao chão, o que ele estava a tentar impedir, e acaba por haver uma disputa", relatou.
O jovem disse ainda que "não houve disparos de aviso" e que Odair "não tinha nada na mão". "Entre os dois tiros que o atingiram não passaram mais de cinco segundos", assegurou. "No primeiro tiro, ficou sem grande reação, no segundo deu dois passos e caiu de costas no chão", acrescentou, garantindo também que a vítima "não gritou, nem ameaçou os agentes" e que "não houve cerco" aos polícias.
Quanto à direção dos tiros, Evandro disse primeiro que o polícia "disparou para baixo", mas acabou por indicar "a zona da virilha", depois de insistência dos juízes e do advogado de defesa, que o confrontou com o depoimento prestado à Polícia Judiciária, onde afirmara que o disparo fora feito "para os pés". Outra contradição com que foi confrontado foi o facto de, esta quarta-feira, ter admitido que "estava a mais de 15 metros", quando à PJ havia dito que estava a apenas cinco.
"A bolsa desapareceu e voltou a aparecer"
O tio do jovem, Fábio Duarte, de 31 anos, também testemunhou. Contou que estava em casa quando ouviu o barulho e saiu para a rua. "O meu sobrinho chegou primeiro. Quando cheguei, estavam os dois polícias a tentar imobilizar o Odair, e ele dizia que aquilo não era necessário", afirmou.
Insistiu que Odair usava "uma bolsa à cintura" e deixou uma observação com algum impacto: "Quando eles revistaram a bolsa, esta desapareceu e depois voltou a aparecer, mas não sei se meteram lá alguma coisa."
Sobre os disparos, descreveu que o primeiro ocorreu quando o agente "estava um bocadinho mais abaixado" e "disparou com a arma colada ao próprio corpo". No segundo, "já estava com os braços estendidos".
Garantiu ainda que a vítima "não tinha qualquer instrumento nas mãos" e que, no momento dos disparos, "estavam umas sete a dez pessoas perto", tendo havida um "bate-boca" com alguns impropérios, "como 'filhos da puta' e coisas assim". Sublinhou, por outro lado, que "o mais estranho" foi ter visto "um agente tirar o telemóvel de um morador que estava a filmar". Não conseguiu, porém, identificar este acusado, limitando-se a dizer que "era careca e tinha barba"
Defesa fala em faca, MP não menciona ameaça
Na primeira sessão, a 22 de outubro, Bruno Pinto defendeu-se dizendo que acreditou estar a ser ameaçado com uma faca. Explicou que viu "uma lâmina na zona da cintura" da vítima e que, nesse momento, disparou em legítima defesa.
Mas as versões das testemunhas desta quarta-feira apontam noutro sentido: ambas afirmaram que os disparos ocorreram na sequência de uma luta corporal, depois de Odair Moniz tentar evitar ser algemado na sequência de uma infração rodoviária.
A sessão ficou ainda marcada pela intervenção do tribunal, que questionou a visibilidade do local onde Evandro Duarte afirmou estar. Um dos juízes chegou a recorrer ao Google Maps para demonstrar que o jovem estaria mais longe e com um campo de visão mais limitado do que descrevera.
Dois tiros, distâncias curtas
De acordo com a acusação do Ministério Público, datada de 29 de janeiro de 2025, Odair Moniz foi atingido por dois projéteis: o primeiro, na zona do tórax, disparado a 20 a 50 centímetros de distância; o segundo, na virilha, entre 75 centímetros e um metro.
O despacho não refere qualquer ameaça com uma arma branca por parte da vítima. O julgamento prossegue a 10 de novembro, com a audição de novas testemunhas

