Supremo Tribunal de Justiça travou entrega definitiva do menino a família de acolhimento com quem vive desde que tinha 17 dias. Juízes defendem que tem de ser dada oportunidade ao progenitor biológico de criar "laços afetivos" com a criança.
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O pai do recém-nascido que, em novembro de 2019, foi abandonado pela mãe num ecoponto, em Lisboa, ainda não conhece a criança, apesar de já a ter perfilhado há mais de um ano. Quando o menino nasceu, o homem não sabia que a ex-namorada estava grávida de um filho seu e, desde que soube da existência do bebé, tem sido impedido pelo Estado de estar com o filho. Agora, o Supremo Tribunal de Justiça travou a entrega definitiva da criança à família que o tem acolhido desde o seu 17.º dia, para que o pai biológico tenha oportunidade de criar "laços afetivos" com o filho e este exerça o direito de o conhecer.
A decisão não implica que o menino, de mais de dois anos e meio, seja retirado já à sua família de acolhimento, mas abre porta a que tal possa acontecer no futuro.
"Cumprirá ao Estado, através das autoridades públicas competentes, promover e apoiar a tentativa de estabelecer o contacto entre [a criança] e [o pai biológico], como uma fase absolutamente necessária do processo, que permitirá, mais tarde, reavaliar a situação e, então, tomar uma decisão tendencialmente mais definitiva quanto [à criança]", referem, no acórdão proferido e divulgado esta quinta-feira, os juízes conselheiros Catarina Serra, Rijo Ferreira e Cura Mariano.
Atualmente, reconhece o Supremo Tribunal de Justiça, o homem não tem condições para acolher o filho em casa.
Mãe autorizou adoção
O caso remonta a 5 de novembro de 2019, quando um recém-nascido foi resgatado por dois homens sem-abrigo, ainda com restos do cordão umbilical, de um ecoponto, em Santa Apolónia, em Lisboa. Tinha sido abandonado pela mãe, de 23 anos, também sem-abrigo e que, posteriormente, chegou a cumprir um ano e dez meses de prisão por ter tentado matar, num quadro de desespero, o recém-nascido. A identidade do pai era então desconhecida.
O menino foi hospitalizado e, 17 dias mais tarde, foi entregue a uma família de acolhimento, com quem continua a residir. Em 2021, o Ministério Público propôs ao tribunal que o menino continuasse ao seu cuidado, tendo em vista uma futura adoção. A mãe aceitou, o progenitor biológico - cuja identidade tinha sido confirmada por teste de ADN - opôs-se. E, em maio de 2021, pediu para conhecer o filho, o que nunca terá sido aceite. O afastamento foi confirmado em fevereiro de 2022 pelo Tribunal da Relação de Lisboa. Inconformado, o pai recorreu então para o Supremo Tribunal de Justiça, que, dado o "manifesto interesse público do caso", decidiu apreciar a decisão de dar o menino para adoção.
Agora, os juízes conselheiros consideraram que, afinal, não estão reunidos os pressupostos para que tal aconteça. Desde logo, por não estar demonstrado que o progenitor biológico põe em perigo a criança, não se interessa por esta, ou não tem "capacidade para assumir o papel de pai".
"[A relação afetiva] não foi criada, não porque o pai biológico não queira mas por razões que são estranhas à sua vontade e que se prendem, inicialmente, com o monopólio da ação da mãe e, depois, com o monopólio da ação do Estado, ou seja, o processo a que subsequentemente, foi sujeito o caso [da criança]. Não fosse um contexto tão adverso e seria bem possível - tem de equacionar-se esta hipótese - que existisse hoje uma ligação afetiva sólida e saudável entre o pai e a criança", sustentam, no acórdão, os juízes conselheiros.
Pobreza não "legitima"
Os magistrados rejeitam, ainda, que a decisão seja legitimada com a comparação entre a situação sócio-económica da família de acolhimento - formada por pai, mãe e três filhos entre os 11 e os 23 anos, e apoiada por uma empregada doméstica de longa data - e do progenitor biológico do menino, com cerca de 30 anos, trabalhador da construção civil, atualmente desempregado e cuidador em permanência do pai acamado, com quem reside a par de um irmão, numa casa que neste momento não tem, segundo a Segurança Social, condições para acolher uma criança.
O homem já garantiu estar disposto a fazer todas as alterações que forem necessárias e a ser acompanhado.
"O facto de a família adotiva apresentar uma situação sócio-económica mais favorável não pode justificar, sem mais, a decisão de entrega da criança à família adotiva, com preterição da sua família biológica", sustentam os juízes, invocando um acórdão, datado de 2016, do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, e lembrando que em causa estão medidas "irreversíveis", "demasiado duras" ou "demasiado drásticas".
"Não se nega que, atualmente, de acordo com os factos assentes, não estão reunidas as condições para que a criança seja entregue ao pai biológico. Sucede que tão-pouco estão reunidas condições para que se exclua já, de uma forma tão absoluta e definitiva, a hipótese de o pai biológico ter e manter uma ligação com a criança. Não há factos que atestem com segurança que inexistem ou que se encontram seriamente comprometidos os vínculos afetivos próprios da filiação pela simples razão de que não foi feita uma tentativa séria para que isso pudesse ser verificado", resumem Catarina Serra, Rijo Ferreira e Cura Mariano.
Os magistrados ordenaram, por isso, a que o processo regresse ao Tribunal da Relação de Lisboa para que este atue em conformidade com o que foi agora decidido pelo Supremo Tribunal de Justiça.