Prostituição: "A maior violência que sofremos é mesmo a violência institucional"
Luciana enverga um robe curto traçado, chinelos de pompons, é alta, magra, está maquilhada, muito penteada, unhas longas a brilhar. Entreabre a porta do apartamento do Porto, mostra-se, e diz a franquear: "Oi, querido, entra".
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O corredor escuro tem iluminações de Natal, uma árvore de plástico a piscar e três portas; ela abre a dela, fecha, convida a desinfetar as mãos e aponta um termómetro de pistola. "Deu 36, tá ótimo". Depois deita-se na cama, distende uma manta fofa aos pés, o quarto é pequeno, quentinho, lá fora chove, a TV está num canal sem som, e ela diz a fingir malícia: "Então, vai querer o quê?".
Estamos agora longe dali, é uma estrada florestal rural que liga Braga a Guimarães, está frio, venta, daqui a pouco vai chover, e Maria caminha de costas nos seus sapatos altos, calções curtos, cabelo solto, casaco comprido forrado a lã, e sacoleja uma bolsinha pela mão - lá dentro tem preservativos, dodots, álcool-gel e máscaras cirúrgicas azul-celeste embaladas em dose individual. "Isso é a única coisa que mudou, pedirmos ao cliente que se desinfete e não tire a máscara", diz Maria, que tem cerca de 40 anos, como Luciana, a sorrir reticências para logo completar: "Isso e termos perdido na pandemia 70 a 80% do negócio, foi uma queda brutal".
Mas hoje, Dia Internacional Contra a Violência Sobre os Trabalhadores do Sexo, aquela não é a única agressão de que padecem as duas mulheres. Há mais: violência física, verbal, discriminação social, moral, machista, patriarcal, xenófoba, rácica - e sobre elas, ainda há uma outra espécie de violência, a que Maria chama "a violência institucional de uma lei que ficou a meio caminho e não serve para ninguém".
"Português é xenófobo"
Luciana, que é brasileira e transexual, diz com ironia que tem sobre si "o jackpot de todas as violências" e passa a explicar. "É. Primeiro eu sou trans e isso já é violento. Nasci com corpo de homem mas eu sou mulher, sou transexual, fiz tratamento, tomei hormonas, só não cortei o membro, mas sinto-me mulher - sou mulher! - , e aqui em Portugal, onde cheguei em 2014, há muita transfobia, muita gente ignorante sobre o que é ser trans, e, como ignora, tem medo e não respeita. Depois, eu sou trabalhadora sexual e aqui, como em todo o lado, há muito preconceito social, muito juízo moral, muito machismo sobre essa profissão". E, por fim, diz Luciana, "também sou brasileira e o português é meio xenófobo, né?, mais do que nós somos lá no Brasil, é o que eu acho".
E Luciana, que só trabalha no apartamento, nunca na rua, das 10 horas à meia-noite, só com marcação, toca noutro ponto a que chama "a discriminação legal". A da lei? "Isso. A lei portuguesa não criminaliza o ato sexual pago, só é crime se houver lucro de uma terceira pessoa, não de quem vende nem de quem compra sexo. Mas a lei é meia incompleta, meia defeituosa, não posso descontar nem pagar imposto dessa profissão, como na Holanda". Então como é que a Luciana faz? "Pago imposto como trabalhadora independente e tenho Segurança Social, mas noutro ramo, esteticista ou massagista. Não estou a enganar ninguém, faço mesmo esses serviços e vou ao domicílio, mas o recibo é curto, a parte maior do trabalho é de índole sexual".
"Polícia está a melhorar"
Maria, que começou a trabalhar aos 19 anos numa boate, depois num apartamento e por fim na rua - pelo meio foi mãe -, continua de cabeça altiva a passarinhar a fria rua rural onde está "das 9 às 5". Está bem informada, diz: "A maior violência que sofremos é mesmo a que está instituída na lei, a violência institucional. A não regulamentação da lei das trabalhadoras do sexo é, talvez, a maior violência que sofremos: torna-nos invisíveis, retira-nos direitos, menoriza-nos socialmente, além de perpetuar o preconceito e a precariedade", diz Maria, que faz assistência social, graciosa, fora da profissão.
Perante aquela violência - "é contínua enquanto não mudar a lei e ainda é preciso descriminalizar o lenocínio simples, porque há muito quem abuse", acusa -, todas as outras violências parecerão menores, diz Maria, que já foi "insultada, agredida, roubada, quase violada". No meio de tudo, diz: "A Polícia não é perfeita mas melhorou a atitude, há uma mudança geracional, são mais cultos, mais cívicos, mais bem formados e isso é de salientar", considera Maria.
Escureceu lá fora, o telefone toca, Luciana interrompe a conversa para atender. Põe uma voz com menos de metade da idade que tem, diz cheia de suavidades: "Minhas fotos são reais, sou ativa e passiva, tenho membro, é 40 [euros] se for simples, é 60 com massagem". O cliente não retorquiu, só desligou.