Prostitutas resistem a multas e às valas abertas para as tirar da berma da estrada
GNR e Câmara de Lousada uniram-se para acabar com zona histórica de prostituição. Mulheres prometem luta.
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As insistentes tentativas para acabar com uma histórica zona de prostituição no concelho de Lousada estão a revoltar mais de uma dezena de prostitutas de beira de estrada. As mulheres alegam que a abertura de valas profundas, que impedem o acesso aos caminhos que usavam para praticar atos sexuais, assim como as multas e operações realizadas pela GNR estão a tirar "o pão da boca" aos filhos. E prometem lutar até ao fim para se manterem no local. Porém, a Câmara de Lousada defende que a saúde pública e a segurança da população exigem o fim de uma atividade que ali se arrasta há décadas. Num ponto as duas partes concordam: a legalização da prostituição seria bom para todos.
Entre março e abril deste ano, quando vigorava o último confinamento imposto para combater a pandemia da covid-19, a GNR de Lousada emitiu cerca de 60 multas por violação do dever geral de recolhimento domiciliário e da limitação de circulação entre concelhos a prostitutas e a clientes que procuravam as ruas nas imediações da Zona Industrial de Lustosa para a prática de atos sexuais.
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Na mesma ocasião, a autarquia lousadense associou-se à estratégia para acabar com a prostituição na Estrada Nacional (EN) 502 e destruiu os barracos construídos na berma da estrada que davam guarida às prostitutas. Também abriu valas profundas, que impedem os carros de aceder ao interior das matas, onde as relações sexuais eram mantidas num ambiente mais discreto.
As medidas, que obrigaram mulheres e homens a pagar multas de 200 euros, começaram por afastar uns e outros da EN 502. Contudo, com o passar do tempo, as prostitutas voltaram à estrada e concentraram-se na rua de Ranhõ, via pouco frequentada, também rodeada de mata e que, antes da pandemia, acolhia apenas duas mulheres. Mesmo a medo, os clientes começaram igualmente a regressar.
"Estive na avenida [EN 502] durante 15 anos, mas agora estou aqui [rua de Ranhõ]. Lá em cima não há condições", explica, ao JN, uma das mulheres sem se querer identificar. Brasileira, de 40 anos, mostra-se indignada com as ações da Câmara e da GNR de Lousada e acusa as autoridades de tudo fazer para expulsar as prostitutas sem lhes apresentar uma alternativa de sobrevivência. "Não vou sair, não vou desistir", garante.
Ana Jesus, portuguesa de 40 anos a viver em Paços de Ferreira, é outra que não pensa abandonar o local onde trabalha há cerca de uma década. "Este é o único rendimento que tenho e estão a tirar-me o pouco que tenho. Vou enfrentar a Câmara até ao fim. Não têm o direito de fazer isto", diz quem usou uma lata para tapar a vala aberta no caminho onde espera os clientes.
Problema existe há décadas
O vereador Nélson Oliveira admite que a intenção da edilidade é, de facto, pôr um ponto final numa zona de prostituição histórica. "A prostituição em Lustosa é um problema que se arrasta há décadas e com implicações na saúde pública, na sociedade e, tendo em conta algumas redes criminosas que ali atuavam, na segurança da comunidade", justifica.
O responsável autárquico também assume que as ações efetuadas até ao momento não tiveram o efeito desejado, antes levaram as mulheres a deslocarem-se para outros espaços da mesma zona. Algumas fixaram-se, inclusive, junto às empresas que povoam a zona industrial, causando desconforto em empresários forçados a conviver com uma realidade que todos conhecem, mas que quase todos preferem ignorar.
"Nas últimas semanas, reforçámos, com a colaboração dos proprietários dos terrenos, a abertura de valas em zonas de acesso à mata, mas penso que a única solução para esta questão é generalizar a discussão em torno da prostituição", realça.
Vereador e mulheres lado a lado na defesa da dignidade humana
Nélson Oliveira tem uma certeza: "é essencial uma clarificação legal e definitiva para este tema". "Não podemos continuar a fingir que a prostituição não existe e, se todos temos noção que jamais irá desaparecer, então que se criem condições legais e de saúde pública para proteger estas pessoas e regulamentar a atividade. Não podemos continuar a pactuar com uma situação que expõe as pessoas, de forma desumana e exploradora, no meio de matas e sem o mínimo de condições, colocando também outras pessoas em risco como infelizmente já aconteceu no passado", sustenta.
E se o vereador pede "à Assembleia da República para colocar de lado dogmas ou conservadorismos", Ana Jesus aplaude a legalização da prostituição. "Eu e outras mulheres não nos importávamos de trabalhar noutras condições. Até aceitava contribuir para a construção de uma espécie de pavilhão onde tivéssemos melhores condições para receber os clientes", refere.
Renata Alves, prostituta há 22 anos, anseia igualmente pela mudança legislativa. "Se a prostituição fosse legal, pagávamos os nossos impostos e trabalhávamos noutras condições. Era melhor para todos", frisa.
Petição à espera de discussão
No verão do ano passado, a petição "Legalização da prostituição em Portugal e/ou despenalização do lenocínio, desde que não seja por coação" chegou ao Parlamento. Promovida por Ana Loureiro, proprietária de uma casa de acompanhantes, propõe que a atividade passasse a enquadrar-se tributariamente como Divertimento Adulto e que profissionais e proprietários de estabelecimentos possam fazer descontos, como qualquer trabalhador a ter acesso a regalias sociais. O documento - que reuniu mais de quatro mil assinaturas - defende que a prostituição só seja praticada por maiores de 21 anos e que residam legalmente em território nacional. Também pretende obrigar as prostitutas a realizar exames médicos de seis em seis meses.
A Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias enviou, no final de março deste ano, a petição para o presidente da Assembleia da República, para que este agendasse a discussão. Tal não aconteceu durante a legislatura que terminou nesta segunda-feira.
Quem são
Muitas são brasileiras, outras nasceram em Portugal. Mas todas estão a passar dificuldades. Conheça a história de vida de cinco mulheres que se prostituem na mata de Lustosa.
Renata Alves
Tinha 20 anos quando abandonou o Brasil e atravessou o Atlântico à procura de uma vida melhor. Em Portugal, começou por trabalhar dois anos numa boate, mas as regras impostas pelo dono da casa, a falta de liberdade e, sobretudo, a obrigatoriedade de ter de dividir os lucros fê-la mudar-se para a berma da EN 502, em Lousada. E é aí que, há duas décadas, ganha o sustento dos dois filhos. "Estou a passar por dificuldades, pois os clientes têm medo da GNR e são cada vez menos. É injusto, porque não fazemos mal a ninguém", critica.
Ana Jesus
Esta mãe solteira de quatro crianças é uma das quatro portuguesas que se prostitui em Lustosa. Mora num concelho próximo de Lousada e há dez anos que vai buscar à prostituição o dinheiro para pagar as contas e a educação dos filhos. "Prefiro vender o corpo a roubar e não vou desistir enquanto não encontrar algo melhor", assegura quem anda à procura de um emprego que tarda em aparecer.
"Antónia"
O nome é, como os seguintes, falso para evitar represálias de pessoas de quem tem medo, mas tudo o resto parece ser dito com verdade. Aos 40 anos, esta brasileira encontrou na prostituição a forma de alimentar os dois filhos, que o pai despreza. "Nunca pagou a pensão de alimentos", salienta. Ainda se inscreveu no Centro de Emprego para ter uma oportunidade de mudar de vida, mas os últimos 15 anos revelaram-se amargos e sem esperança. "Sem clientes como é que vou pagar as minhas contas? Não tenho outra saída a não ser roubar", lamenta.
"Ana"
Foi multada três vezes pela GNR durante o confinamento. Só pagou uma coima, mas recorda que, em 12 anos na mata de Lustosa, nunca tinha enfrentado situação semelhante. "Não tenho dinheiro para pagar as despesas e é muito injusto, porque pago os meus impostos", garante. Com 43 anos, muitos dos quais passados em Portugal, promete lutar pelo que diz serem os seus direitos e não põe de lado uma manifestação em frente à Câmara. "Fazemos um escândalo", avisa.
"Sónia"
Com três filhos e poucos clientes, esta mulher, de 43 anos, já acumulou dívidas desde que GNR e Câmara de Lousada se uniram no combate à prostituição. Este é, declara, um dos períodos mais difíceis desde que aterrou em Portugal, mas desistir não é opção. "Não temos de onde tirar dinheiro para os nossos filhos", alega.
Apoios sociais não chegam para tirar mulheres da mata
Nélson Oliveira revela que as mulheres residentes em Lousada e que tenham na prostituição a sua fonte de rendimento estão sinalizadas pelos serviços sociais da autarquia de Lousada. E acrescenta que também já foram realizadas várias tentativas para as retirar do mundo do sexo a troco de dinheiro.
"Foi oferecida ajuda e tentámos inserir estas mulheres em ações de formação e no mercado de trabalho. Mas nenhuma aceitou", descreve. O autarca compreende que os apoios sociais oferecidos pelo Estado estão longe de se equipararem aos lucros auferidos com a prostituição e, nesse sentido, entende a relutância evidenciada pelas mulheres. "É uma luta difícil, mas temos de fazer alguma coisa", declara.
As mulheres que falaram ao JN, todas estrangeiras ou a viver fora de Lousada, garantem que não receberam qualquer proposta de apoio social. "Se sair de Lustosa não tenho alternativa", afirma uma das prostitutas. "Nunca ninguém me perguntou se queria sair desta vida", acrescenta outra. "Não me ofereceram qualquer ajuda", complementa Ana Jesus.
Leia aqui a entrevista ao juiz Jorge Ribeiro Martins sobre a necessidade de legalizar a prostituição