Provas de acesso à advocacia foram o descalabro. Culpa é da covid ou das universidades?
Três quartos dos estagiários reprovaram em dezembro. Ordem invoca pandemia, mas nem todos concordam.
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A elevada taxa de reprovação no mais recente exame de acesso à Ordem dos Advogados (OA), provisoriamente fixada em 75,95%, reacende o debate sobre a qualidade dos cursos superiores de Direito.
A líder da Comissão Nacional de Avaliação da OA, Leonor Chastre, atribui os resultados às condicionantes na formação profissional durante a pandemia de covid-19, mas, para o ex-bastonário da associação profissional Luís Menezes Leitão (2020-23), há anos que é notada "uma deficiência na formação nas universidades". Já os presidentes dos conselhos regionais com mais candidatos a advogados, Lisboa e Porto, dividem-se sobre a causa de tantos chumbos.
Os dados foram fornecidos ao JN pela OA: em junho e dezembro passados, realizaram provas de agregação à associação profissional um total de 1603 advogados estagiários. Destes, 767 são já considerados chumbados. Outros 701 fizeram a prova só em dezembro e aguardam resposta ao pedido de revisão de classificação, podendo, ou não, ter tido nota negativa.
Neste momento, a taxa geral de reprovações no ano passado (soma de ambas as provas) está fixada em 47,85%, sendo que, só em dezembro, tiveram nota negativa 75,85% estagiários. Se, como expectável, parte dos recursos relativos à última prova fizer descer a respetiva taxa de não aprovados, também a taxa geral de 2022 baixará. Em 2019, 2020 e 2021, chumbaram, respetivamente, 30%, 23% e 29,7% dos candidatos.
Aprender à distância
Para a Comissão Nacional de Avaliação da OA, não há dúvidas de que os resultados foram influenciados pelas restrições sociais implementadas em março de 2020. "A pandemia de covid condicionou a formação quer no que diz respeito à formação ministrada pelos centros de estágio, que foi toda online [...] quer no escritório do patrono", sublinha Leonor Chastre. Tal terá tido como consequência "a não possibilidade de assistências e intervenções em tribunal" enquanto duraram os condicionamentos.
Luís Menezes Leitão concorda que a pandemia "dificultou muito as idas aos tribunais" e que tal "pode ter tido alguma influência" na elevada taxa de reprovação, mas aponta a mira às universidades.
"Com a licenciatura [no formato resultante do Processo] de Bolonha, diminuíram muito os requisitos curriculares para ter acesso à Ordem", defende, lembrando que, no seu mandato, foi aprovada e remetida à Assembleia da República uma proposta para que passe a ser obrigatório o mestrado para aceder à profissão. Os primeiros licenciados por Bolonha formaram-se em 2011.
O presidente do Conselho Regional de Lisboa da OA, João Massano, não é tão específico. Ainda assim, recorda que é necessário fazer uma "análise global" e "ir à procura, nomeadamente no Ensino Superior, do que é que aconteceu". Deficiências nos exames (feitos na Comissão Nacional de Avaliação) e nas grelhas de correção, bem como na própria atuação do órgão que lidera, são outras hipóteses que devem ser equacionadas, aponta Massano.
Porto anuncia medida
O homólogo do Conselho Regional do Porto, Jorge Barros Mendes, assegura que os próximos exames, em junho, já serão antecedidos de "sessões de esclarecimento". Mesmo que afirme não duvidar de que a pandemia foi, "de facto, a justificação" dos maus resultados.
"[Os candidatos] terminaram a licenciatura em pandemia e depois fizeram o estágio em pandemia. Toda a realidade prática em termos de formação e de estágio foi à distância", sustenta, escusando-se a atribuir culpas ao Ensino Superior e a diferenças de formação entre instituições. "O objetivo da Ordem é colmatar essas diferenças", atira. Leonor Chastre sentencia: "A proveniência dos advogados estagiários é irrelevante, todos são licenciados em Direito".
Proposta para restringir acesso gerou críticas
A proposta da Ordem dos Advogados para que os requisitos de acesso à profissão passem a ser uma licenciatura pré-Bolonha ou uma pós-graduação certificada, um mestrado ou um doutoramento pós-Bolonha foi bastante criticada, em agosto de 2021, pelos estudantes de Direito, incluindo o seu Conselho Nacional.
Este manifestou então "muita tristeza" pela "tentativa de serem alçadas ainda mais barreiras aos estudantes de Direito e juristas" para aceder à condição de advogado estagiário. "Não parece essencial ao exercício da profissão a detenção do tipo de conhecimento que é aprofundado durante um segundo ciclo de estudos universitários", considerou, por sua vez, a Associação de Estudantes de Direito da Universidade do Minho.
Distribuição
Maioria em Lisboa e Porto
Mais de 85% dos 767 estagiários com o chumbo já confirmado em 2022 são dos conselhos regionais de Lisboa (347) e do Porto (314). São também os que têm mais candidatos.
Menos nas ilhas
Os conselhos regionais dos Açores e da Madeira tiveram, respetivamente, apenas três e oito chumbos. O de Évora teve 18, o de Faro 34 e o de Coimbra 43.
Recursos idênticos
Lisboa e Porto são também os territórios onde os estagiários apresentaram a maioria dos 701 recursos (591) pendentes. Seguem-se Coimbra (50), Faro (26), Évora (13), Madeira (12) e Açores (9).