Código dos Contratos Públicos impede ajustes diretos com entidades privadas que tenham feito ofertas. Direção Nacional garante que contratos são legais, mas especialista afasta regime do mecenato invocado pela PSP.
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Uma empresa de Sintra que ofereceu máscaras com viseiras de proteção à PSP obteve três ajustes diretos, num valor superior a 113 mil euros, efetuados pela própria Polícia. A Direção Nacional da PSP garante que cumpriu todos os procedimentos legais, mas um professor universitário especialista em contratos públicos defende que a doação inicial impedia a existência de qualquer ajuste direto entre as duas entidades. E refere que o negócio poderá implicar sanções a aplicar pelo Tribunal de Contas e a restituição ao Estado do montante em causa.
O caso remonta a 23 de março, quando o superintendente-chefe Magina da Silva revelou, "com especial alegria", no programa da RTP "Prós e Contras", que "um jovem empresário de 72 anos, de nome Adriano Lourenço, que tem uma fábrica com alguma capacidade, em Sintra, na área dos policarbonatos", se tinha comprometido a oferecer máscaras com viseiras de proteção à PSP. "Vamos comprar 19 500 viseiras e o senhor vai oferecer-nos 500. Na guerra e nas crises temos de nos desenrascar. Não será pela falta de equipamento de proteção que os polícias estarão mais expostos", referiu o oficial, que havia sido nomeado diretor nacional há dois meses.
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A doação foi, então, elogiada e a fábrica da Apametal visitada por responsáveis políticos. No início de abril, o ministro da Administração Interna, Eduardo Cabrita, na companhia de Magina da Silva, percorreu as instalações da empresa, que se reconverteu para produzir viseiras e óculos de proteção. E, em maio, o líder do CDS, Francisco Rodrigues dos Santos, deslocou-se a Rio de Mouro, Sintra.
Já no final de junho e no início de julho foram publicados no portal Base três contratos por ajuste direto da PSP com Apametal. O primeiro tem data de 23 de abril e diz respeito à aquisição de duas mil máscaras com viseira pelo preço de oito mil euros, enquanto o segundo contrato, realizado em 24 de junho, prevê a compra de um número indeterminado do mesmo tipo de viseiras, pela quantia de 78 mil euros. Há ainda um terceiro ajuste direto da PSP à Apametal, feito no dia 3 de julho, com vista à obtenção de barreiras de proteção em policarbonato para locais de atendimento ao público. O valor do contrato foi de 27 550 euros.
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Declaração de donativo
Ao JN, a Direção Nacional da PSP alega que "o procedimento aquisitivo das viseiras" ocorreu no âmbito da lei "que estabeleceu um regime excecional de contratação pública" e permitiu agilizar "os procedimentos aquisitivos relacionados com o combate à pandemia". "O processo aquisitivo foi devidamente formalizado e documentado", frisa fonte oficial, explicando que, "na sequência do procedimento de aquisição, o operador económico/fornecedor Apametal manifestou livremente a vontade de doar 1000 viseiras à PSP, tendo esta anuído e emitido a declaração prevista no Estatuto dos Benefícios Fiscais". "A emissão dessa declaração salvaguarda que um operador que tenha procedido a qualquer donativo possa constituir-se como parte num procedimento aquisitivo futuro. Naturalmente, o mesmo procedimento foi seguido em relação a outras entidades que, igualmente, doaram equipamento de proteção à PSP para distribuição ao seu pessoal", acrescenta.
Contudo, João Pacheco Amorim, professor de Contratos Públicos na Faculdade de Direito da Universidade do Porto, alega que os ajustes diretos estavam proibidos pelo Código de Contratos Públicos. "Aquela doação não está abrangida pela lei do mecenato, visto que a PSP não tem quaisquer atribuições, e muito menos "predominantemente", nos domínios social e cultural, desportiva ou ambiental ou educacional. Daí decorre que deveria ter sido aberto um procedimento concursal", sustenta.
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Oficiais podem ter de devolver dinheiro
Para João Pacheco Amorim, a doação realizada antes dos dois últimos contratos entre a PSP e a Apametal poderá, "segundo a melhor doutrina", ter como "consequência a nulidade da adjudicação e do contrato, o que gera responsabilidade financeira sancionatória e reintegratória do titular do órgão adjudicante". Ao JN, o também advogado especialista em Direito Administrativo declara que tal pode significar uma sanção do Tribunal de Contas e a obrigatoriedade, por parte de quem assinou os ajustes diretos, de pagar ao Estado os montantes envolvidos nos contratos.
Empresa ofereceu 15 mil viseiras
Desde que a pandemia chegou a Portugal, a Apametal, doou 15 mil máscaras com viseiras de proteção a diferentes entidades. Com a ajuda de parceiros, a empresa de Sintra entregou material de proteção a hospitais, corporações de bombeiros e cadeias. Para além da PSP, também vendeu, por 13 417 euros, 226 proteções de balcão em acrílico ao Instituto de Formação Profissional e viseiras (36 920 euros) ao Município de Sintra. Contactada pelo JN, a Apametal não respondeu às perguntas colocadas.
O que diz a lei
Código dos Contratos Públicos - Artigo 113.º
5 - Não podem igualmente ser convidadas a apresentar propostas entidades que tenham executado obras, fornecido bens móveis ou prestado serviços à entidade adjudicante, a título gratuito, no ano económico em curso ou nos dois anos económicos anteriores, exceto se o tiverem feito ao abrigo do Estatuto do Mecenato.
Estatuto dos Benefícios Fiscais - Artigo 61.º
Para efeitos fiscais, os donativos constituem entregas em dinheiro ou em espécie, concedidos, sem contrapartidas que configurem obrigações de caráter pecuniário ou comercial, às entidades públicas ou privadas, previstas nos artigos seguintes, cuja atividade consista predominantemente na realização de iniciativas nas áreas social, cultural, ambiental, desportiva ou educacional.