Julgamento do caso Doyen e de intrusões na Justiça, futebol e advogados começa esta sexta-feira sob fortes medidas de segurança em Lisboa.
Corpo do artigo
É o julgamento do século, como foi qualificado pela juíza-presidente da Comarca de Lisboa. Rui Pinto, cujas revelações nos casos Football Leaks e Luanda Leaks atraíram a atenção mundial, começa hoje a responder por crimes de tentativa de extorsão ao fundo de investimento Doyen, sabotagem informática ao Sporting, acesso ilegítimo, violação de correspondência e acesso indevido ao DCIAP do Ministério Público e ao procurador Amadeu Guerra, então diretor daquele Departamento, mas também à Federação Portuguesa de Futebol e a escritórios de advogados. Quatro das vítimas pedem ao alegado pirata informático indemnizações num total de 34 078 euros.
12606173
A maior fatia nos pedidos é do advogado João Medeiros (um dos advogados do Benfica), que trabalhava no escritório da firma PLMJ. Reclama 20 mil euros, que pretende sejam doados ao Instituto Português de Oncologia (IPO). Do mesmo escritório na altura, outros dois advogados alegadamente espiados, Rui Costa Pereira e Inês Almeida Costa, exigem-lhe 2039 euros cada um. Também solicitaram ao tribunal que, em caso de condenação, o valor seja atribuído a uma instituição de solidariedade social. A Doyen pede uma indemnização por danos não patrimoniais de dez mil euros. Todos alegam que se trata de valores simbólicos, por não conseguirem quantificar os danos provocados pelas intrusões nos sistemas informáticos.
Testemunha protegida
Rui Pinto, que tem atualmente o estatuto de testemunha protegida pelo Estado, já pediu, na contestação que enviou ao tribunal, para ser absolvido desses pedidos. No mesmo documento admite pela primeira vez ter espiado os e-mails das vítimas, mas argumenta que o fez apenas com o intuito de revelar crimes. Ou seja, apresenta-se como um denunciante de corrupção, um argumento que sempre avançou para se defender dos ilícitos que lhe foram imputados, desde que foi detido em Budapeste, na Hungria. Há dias, reiterou que vai provar em julgamento que é um denunciante.
O gaiense de 31 anos passou vários meses em prisão preventiva, até ter decidido colaborar "a sério" com a Polícia Judiciária (PJ) e o Ministério Público (MP). Fez um acordo com as autoridades, dando-lhes acesso a todos os segredos contidos no material informático, até então encriptado, que lhe foi apreendido na Hungria. O JN sabe que esta colaboração vai permitir abrir múltiplas investigações sobre crimes económico-financeiros e pôr a nu esquemas de evasão fiscal de dezenas de milhões de euros.
O estatuto de testemunha protegida pelo Estado permitiu-lhe passar a viver livre, embora numa casa, cuja morada é mantida em segredo e paga pelo Estado. Mas esta colaboração não o livra da acusação dos crimes pelos quais começa hoje a responder. Poderá, eventualmente, beneficiar de atenuantes e outras vantagens decorrentes de mudanças legais em curso ou de legislação já existente.
Atenção internacional
O julgamento de Rui Pinto tem uma atenção mediática internacional por ter sido ele quem criou o blog Football Leaks, abalando o mundo financeiro do futebol europeu. Ao tornar público contratos e comunicações privadas de clubes, jogadores e agentes, Rui Pinto levou as autoridades judiciais de vários países a intentar e ganhar processos de fraude e evasão fiscal de milhões. Antes de ser preso, ia colaborar com as autoridades francesas num outro processo.
Também foi ele quem reuniu e entregou a um consórcio internacional de jornalistas de investigação documentos que deram origem a escândalos como o recente Luanda Leaks, revelando alegados desvios multimilionários de dinheiro públicos angolanos por parte de Isabel dos Santos, filha do ex-presidente. Por isso, terá sido alvo de várias ameaças, em Portugal e vindas de outros país, que vão motivar hoje medidas de segurança excecionais dentro e fora do Campus de Justiça de Lisboa.
A saber
Testemunhas
Rui Pinto arrolou 45 testemunhas abonatórias para o julgamento. São personalidades do desporto, como Jorge Jesus, mas também lá está o diretor nacional da Polícia Judiciária, Luís Neves, que se envolveu pessoalmente na libertação do arguido, e Edward Snowden, antigo administrador de sistemas da CIA que denunciou um sistema de vigilância global americano.
Aníbal Pinto
Rui Pinto estará ao lado de outro arguido. Aníbal Pinto, o advogado que terá intermediado contactos com representantes da Doyen, também foi acusado de extorsão na forma tentada. Desde o início do processo que afirma ter-se limitado a fazer o trabalho de advogado.
Bruno de Carvalho
O antigo presidente do Sporting Bruno de Carvalho, o presidente da Federação Portuguesa de Futebol, Fernando Gomes, e o advogado e político Nuno Morais Sarmento estão entre as 71 testemunhas arroladas pelo MP na acusação.
Legitimidade
Francisco Teixeira da Mota, advogado de Rui Pinto, argumenta que a Doyen Sports, com sede em Malta, não tinha legitimidade para fazer a queixa que originou o processo, uma vez que os ataques informáticos foram contra a Doyen Capital, sediada em Londres.
Inédito
Sala curta para média obriga a transmissão
É uma solução inédita: para fazer face ao interesse de jornalistas nacionais e estrangeiros em assistir ao julgamento de Rui Pinto, público por natureza, as audiências vão ser transmitidas, em circuito fechado, para um auditório situado no Campus de Justiça de Lisboa.
A sala escolhida para as diligências até é uma das maiores do Tribunal Central Criminal de Lisboa, mas, com a lotação reduzida para travar a covid-19, terá lugar no público apenas para quatro familiares dos arguidos e seis jornalistas. Os restantes, todos acreditados previamente, só poderão assistir à audiência por videoconferência. A entrada será feita por ordem de chegada. Está proibida a captação de som e imagem dentro de qualquer das salas.
A solução poderia ter passado por transferir o julgamento para um outro edifício, alheio à Justiça, de maior dimensão, mas tal poderia trazer problemas ao nível de segurança.
O julgamento começa às 9.30 horas. A previsão é de que as diligências durem pelo menos até dezembro, com, em média, três sessões semanais.