Estrutura de apoio à vítima em Santo António regista cada vez mais agressões de filhos a pais.
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São cada vez mais as pessoas que sofrem de violência doméstica e que procuram o Espaço Júlia, equipamento social que apoia vítimas deste crime na Junta de Freguesia de Santo António, em Lisboa. O ano passado, o espaço recebeu 970 queixas, mais do que em 2020 (685) e 2019 (628) e só este ano, até ao início de outubro, 550.
O chefe João Dias, que coordena a equipa de agentes da Polícia de Segurança Pública no Espaço Júlia, confirma que estes números têm vindo a aumentar, nomeadamente a violência de filhos contra pais que tem crescido "ano após ano". Desde que abriram, em 2015, receberam 4500 queixas.
Luísa Araújo, 68 anos, demorou quase uma década a apresentar queixa do filho. "Sou mãe, foi muito difícil. Disseram-me muitas vezes: "não faças isso porque é teu filho". Eu era sempre a má da fita", recorda. Há oito anos, quando vivia com o filho em Bristol, na Inglaterra, aconteceu um dos piores episódios. "Pôs-me toda negra ao pontapé por uma coisa sem importância nenhuma. Ia-me matando. Eu não sabia falar inglês e não fui à Polícia", recorda. Foi só em abril deste ano, quando uma situação com a mesma gravidade se repetiu, que não hesitou.
"Disse-lhe: a mim não me bates mais. Ele pediu para desistir da queixa, mas não o fiz", conta. O agressor ficou sujeito à medida de coação de proibição de aproximar-se da vítima, mas por pouco tempo. "Ligou-me a dizer que estava a dormir na rua. As pessoas e um senhor no tribunal disseram-me para dar-lhe cama. Não retirei a queixa, mas tive de lhe abrir a porta", diz. Com a ajuda do Espaço Júlia candidatou-se a habitação municipal, que já lhe foi atribuída e vai voltar a viver sozinha.
"O meu filho pôs-me toda negra ao pontapé por uma coisa sem importância nenhuma. Ia-me matando"
PANDEMIA AGRAVOU
Esta é uma realidade que preocupa, cada vez mais, o Espaço Júlia. "Todos os anos, aumenta a violência de filhos sobre os pais. Com a pandemia, houve separações e filhos que voltaram para casa dos pais", avança o chefe João Dias, que ressalva que "é difícil encontrar solução nestes casos".
"A nível legal trabalha-se mais rapidamente e sai logo uma medida de coação, mas depois qual é o pai ou mãe que deixa o filho a dormir na rua? Muitos deles voltam para casa mesmo com proibição de contacto", revela.
Outra das dificuldades tem a ver com "ter-se o hábito de focar a culpabilização na vítima", o que acontece "ainda mais" nestas situações. Inês Carrolo, técnica de apoio à vítima, diz que pais que apresentam queixa "perguntam onde é que falharam".
A também diretora técnica do espaço alerta ainda para "as habilitações literárias, do suspeito e da vítima, estarem a subir".
"As pessoas acham que são os pobrezinhos e os bêbados que batem às mulheres, mas não. Contam-se pelos dedos das mãos as mulheres que estão dependentes economicamente do suspeito", assegura Inês Carrolo, que nota também "mais vítimas com perturbações do foro psicológico".
Detalhes
De norte a sul
No único equipamento do país em que um técnico trabalha com agentes da PSP já receberam pessoas do Porto ao Algarve. Está aberto 24 horas por dia.
Mais mulheres
A maioria das queixas é de mulheres, entre os 30 e 40 anos. A maior parte já não coabita com o suspeito.
Homenagem
O Espaço Júlia homenageia uma idosa de 77 anos, com aquele nome e que ali vivia quando foi morta pelo marido, após uma discussão.