Rui do Carmo: "Os números de mulheres e crianças em casas de abrigo devem envergonhar-nos"
Há quase seis anos na coordenação da Equipa de Análise Retrospetiva de Homicídio em Violência Doméstica, Rui do Carmo admite ser demasiado lenta a evolução do combate a este crime. Muitas das medidas aprovadas em 2019 continuam por aplicar e é preciso, a par do plano criminal, investir mais em educação. Não há casos julgados em processo sumário, o que poderia transmitir à sociedade uma mensagem de firmeza contra este crime. E é na proteção à vítima, evitando retirá-la do seu meio natural, que o sistema mais falha.
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O número de queixas por violência doméstica tem vindo a aumentar e atingiu um valor recorde no terceiro trimestre, num total de 8.887. Este aumento será real ou resultado de uma maior capacidade de denúncia?
A oscilação das denúncias por violência doméstica, nos últimos anos, não tem sido muito grande. Tem andado entre as 27 e 29 mil queixas/ano por ano. Pode num ou outro trimestre haver oscilação, mas não atribuiria a um aumento num trimestre nenhum significado especial.
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Cerca de 80% das queixas acabam arquivadas. O que explica esta taxa?
Tem havido ao longo dos anos alguma dificuldade em fazer prova. Há um fator neste tipo de crime, num número elevado de casos, que é a utilização por parte da vítima da faculdade de se poder recusar a depor, pelas relações especiais que tem com o agressor. E esta ambiguidade da posição da vítima faz com que ela utilize esta prerrogativa legal e isso dificulta a prova. É necessário que se utilizem outros meios de prova, que se faça uma investigação proativa sobre os factos que terão ocorrido. Houve um esforço, a partir de 2019, com a construção do manual de atuação funcional dos órgãos de polícia criminal nas 72 horas após uma denúncia de maus-tratos, que elenca um conjunto de diligências cuja aplicação pode ser muito importante para alterar essa percentagem grande de inquéritos arquivados. Esse manual está publicado desde o ano de 2020. Tem havido progressiva formação dos órgãos de polícia criminal para a sua implementação, se calhar não de forma tão rápida como gostaríamos.
Referiu a ambiguidade em relação à vítima, por muitas vezes não sentir a segurança suficiente para denunciar. Como sociedade, ainda não criámos as condições para a denúncia e ainda valorizamos de forma deficiente a violência doméstica?
Ainda há constrangimentos sociais para que as pessoas denunciem a situação que estão a viver. Quando falamos do combate à violência doméstica, não falamos apenas do combate criminal, mas antes disso de um combate cultural. Em que a educação dos mais jovens contra este tipo de comportamentos e afirmação dos seus direitos e igualdade de género é fundamental. São efeitos que não se veem a curto prazo, mas que são importantes.
Lidera a equipa de análise retrospetiva de homicídio em violência doméstica há vários anos. À luz desta experiência, que balanço faz do trabalho efetuado e das falhas que há, nomeadamente na atuação de polícias, médicos, procuradores, professores?
Não tão depressa quanto gostaríamos, tem havido alguma evolução na capacidade de combater este fenómeno. A equipa tem analisado um conjunto de casos de homicídio e tentativa de homicídio, em que predominantemente as vítimas são mulheres, e tem endereçado um conjunto de recomendações a várias entidades. Essas recomendações têm introduzido alguma modificação na forma de trabalhar. A resolução de Conselho de Ministros de 2019, um documento importante porque definiu uma estratégia de criação de instrumentos, não só para o conhecimento da realidade, mas para a intervenção no fenómeno, tem muitos aspetos que resultam do trabalho e das recomendações desta equipa.
A suspensão provisória do processo devia ser mais aplicada, tendo um efeito de sensibilização e dissuasão do agressor?
A suspensão provisória do processo é um instrumento importante no processo penal, nos casos em que a gravidade do comportamento não é elevada. Em 2021, a suspensão provisória do processo correspondeu a 30% dos casos em que o Ministério Público entendeu que havia indícios suficientes de o crime ter sido praticado. Constitui já, por isso, uma parcela com significado. De qualquer forma, considero que ainda há espaço para se poder aplicar mais a suspensão. Mas há um aspeto que, mais do que falar dos números, é importante realçar. É importante que as instituições e regras de conduta sejam adequadas ao caso concreto e que se tenha a capacidade da sua efetiva aplicação. Temos de ter a garantia de que a suspensão provisória do processo é um efetivo meio de contenção e modificação de comportamentos.
Recentemente sublinhou que, apesar de termos muitas detenções em flagrante delito (737 no ano passado), não há julgamentos em processo sumário. É uma falha do nosso sistema judicial?
É uma falha do nosso sistema. Não tivemos no ano passado nenhum processo sumário. Não digo que todas essas detenções permitissem julgamento em processo sumário, digo é que pode ser muito importante como forma de parar os maus-tratos e de mostrar que o sistema atua rápida e firmemente. É uma mensagem muito importante não só para o arguido em concreto, mas para a sociedade.
A denúncia é muitas vezes um fator acrescido de risco para a vítima, que se vê obrigada a sair de casa. O que falta fazer para conseguir proteger de forma mais eficaz a vítima?
Tem de se melhorar a capacidade de protegê-la e não podemos pensar nessa proteção tendo como princípio a deslocação para casas de abrigo. Temos de garantir a proteção conseguindo prova indiciária suficiente para afastar o agressor da residência. Temos números, neste momento, que nos devem envergonhar. Os últimos dados do terceiro trimestre de 2022 dizem-nos que estão nas casas de abrigo 853 mulheres, 706 crianças e 15 homens. Estes são números excessivos e devem-nos fazer refletir sobre a necessidade de se ser proativo na recolha de prova indiciária tendo em vista a aplicação de uma medida de afastamento do agressor da residência. A capacidade de aplicar a medida de afastamento foi até explicitada, para não dizer alargada, na última revisão da lei da violência doméstica. Estamos a falar de vítimas que são retiradas do seu meio natural para outro sítio distante, onde vão recomeçar uma vida nova. E as crianças mudam completamente do meio habitual. Não deve ser com facilidade que se toma esta decisão, a não ser nos casos em que isso é necessário por razões de segurança.
Que confiança e segurança têm as vítimas em processos que são morosos e que acabam, por vezes, em notícias de jornais?
Desde 2015 que a lei da violência doméstica diz que, quando há uma denúncia, no prazo máximo de 72 horas deve-se garantir a proteção da vítima e recolher os elementos de prova que possam existir e, por outro lado, avaliar o grau de risco que aquela vítima corre. A partir daí, o juiz de instrução deve aplicar uma medida de coação, que pode ser o afastamento. Isto está na lei desde 2015 mas não temos tido capacidade de o aplicar de uma forma efetiva. Por isso, em 2019, foi decidido construir o manual que referi e está a ser feito um esforço de formação e aplicação para que, finalmente, se possa aplicar essa norma. O caminho é difícil, mas não nos podemos resignar a estes números.
Tem noção de quantos agressores são afastados das vítimas?
Sobre isso não tenho números. Mas posso dizer que os dados do terceiro trimestre de 2022 dizem que havia 791 agressores com vigilância eletrónica. Estes estão, seguramente, afastados das vítimas.
As crianças são por vezes vítimas de violência, mas são, além disso, vítimas indiretas e silenciosas. Os números que referiu são expressivos e denotam uma necessidade de atenção particular.
As crianças são vítimas deste tipo de comportamento de uma forma muito significativa. As alterações que se fizeram no ano passado, quer à lei da violência doméstica, quer ao Código do Processo Penal, quer ao Código Penal, vieram reforçar a chamada de atenção para a situação das crianças e a sua proteção. Introduziu-se na lei um conceito que não existia, de criança exposta a violência doméstica e, por outro lado, a proteção penal. E foi permitido que o juiz pudesse, como medida de coação, tomar decisões que relevam para efeitos de responsabilidades parentais, que por vezes é necessário para garantir a proteção da criança e a neutralização do agressor.
Outra face do fenómeno é o suicídio dos agressores. No primeiro semestre do ano aponta-se oito homicidas que se suicidaram, dos 17 totais. Sem criar uma nuvem que possa parecer uma justificação, temos, por detrás da violência doméstica, um problema grave de saúde mental?
Não tenho dúvidas de que teremos. De qualquer forma, os dados internacionais indicam que cerca de um terço dos homicidas se suicidam. Não é uma realidade apenas portuguesa. Já tivemos um ano em que a maioria dos homicidas se suicidaram. No ano passado, a percentagem foi pequena: 18%. No primeiro semestre deste ano foram 47%. É uma percentagem elevada. Esta é uma matéria insuficientemente, ou quase nada, estudada. É fundamental que se investigue para encontrar a verdadeira razão destes números, tendo em vista não só evitar os suicídios, mas os homicídios previamente praticados.
Os magistrados judiciais e do Ministério Público são essenciais neste combate. Nota alguma mudança de comportamento depois da divulgação de casos polémicos, como foi o do juiz Neto de Moura em 2019?
Penso que tem havido uma evolução. Os números de aplicação de prisão efetiva e a utilização e monitorização por meios eletrónicos dos agressores têm vindo a aumentar. Há uma maior sensibilização para estes casos. Estamos no mundo ideal? Não. Mas tem havido evolução. Só que nesta matéria, quer na atuação dos tribunais, quer na atuação das polícias, ou outros organismos que participam neste combate, a evolução é sempre lenta. Gostaríamos que tudo fosse mais rápido e eficaz.
Já referiu que têm vindo a ser apontadas propostas de melhoria. Que balanço é que faz da aplicação das medidas?
Fazendo o rol das medidas prioritárias, foi decidido ampliar a base de dados de violência contra as mulheres e violência doméstica, que engloba dados da justiça, dos órgãos de polícia criminal, da direção de serviços prisionais, de comissões de proteção de crianças e jovens, da comissão de proteção de vítimas de crime, da CIG e da Segurança social. Essa base de dados ainda não existe. Foi decidido também criar o tal manual de atuação funcional, que saiu em 2020, e que está agora na fase de implementação. Foi decidida a revisão do auto de notícia e de denúncia padrão que é utilizado pelos órgãos de polícia criminal, publicado em outubro de 2021 e que está agora, depois de resolvidos alguns problemas informáticos, a começar a ser implementado. Foi decidida uma avaliação do modelo de gabinetes de apoio à vítima (GAV) que estão nos DIAP do Ministério Público.
Foi atingido o objetivo de alargar os GAV?
O alargamento não está concretizado. Esta avaliação foi feita, há um estudo encomendado pelo Governo e que foi concluído em agosto de 2020, mas não há ainda alargamento destes gabinetes. Foi decidida a revisão da ficha de avaliação de risco e frisava-se a necessidade de este instrumento ser adaptado para as crianças e para as pessoas em situação de vulnerabilidade. A equipa de análise retrospetiva já reafirmou que é necessário melhorar a sua aplicação, através de uma melhor formação, e atualizar a relevância dos fatores que lá são referidos. Estamos a falar de um instrumento de 2014 e o mundo tem sido acelerado na sua evolução, por isso há modificações significativas nos comportamentos que devem levar a uma releitura desse instrumento. Apesar de se ter dito em 2019 que esse instrumento ia ser revisto, isso ainda não aconteceu. Outro ponto era a decisão de criar projetos-piloto do que se chamou de redes de urgência de intervenção, que constituem equipas em que estão os órgãos de polícia criminal, as autoridades judiciárias, componentes da rede de apoio e o serviço de informação às vítimas. Serão estruturas que trabalham 24 horas por dia e podem responder a qualquer solicitação. Estas estruturas, cujo projeto-piloto foi definido em 2019, também ainda não existem.
O Porto avançou com um projeto-piloto que aposta na criação de equipas especializadas. É uma experiência que deveria ser replicada no resto do país?
Este projeto-piloto tem outras componentes que essas estruturas já existentes não têm. É uma intervenção mais complexa, mais completa e mais operativa. Não ponho em causa a relevância e importância do trabalho feito nessas estruturas, refiro apenas que o alargamento dessa intervenção permanente deve ser feito com base na ideia que está consignada na resolução do conselho de ministros de 2019.
Recentemente, o JN revelou uma tese de doutoramento que mostra que a reabilitação dos agressores imposta pelos tribunais não tem por base nenhum critério científico. A abordagem à questão da reabilitação deveria ser mais eficaz?
A intervenção junto dos agressores está prevista na nossa lei e na Convenção de Istambul. É uma obrigação do Estado português. Os números que temos, do segundo trimestre deste ano, falam-nos de 2739 pessoas que terão frequentado o programa que a Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais tem montado para aplicação na comunidade. A nível prisional, tem havido uma grande implementação deste programa. Em 2019, tínhamos 33 pessoas a frequentar e temos agora 316. Coincide aliás com uma recomendação da equipa de análise retrospetiva de aplicar este programa às pessoas que estão nas prisões. Tem havido dificuldades na aplicação na comunidade. A esse nível, há insuficiências.
Ouça a entrevista completa este domingo ao meio-dia na TSF