Seguradora condenada em acidente mortal com carro elétrico demasiado silencioso
Relação do Porto reconhece culpa de jovem que morreu atropelada e iliba condutor, mas obriga seguradora a pagar. E adverte que quem guia também tem de estar atento.
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O Tribunal da Relação do Porto (TRP) atribuiu culpas à ausência de ruído de um carro elétrico no atropelamento mortal de uma jovem, de 26 anos, em Gondomar, e condenou uma seguradora a indemnizar a família da vítima em mais de 27 mil euros, apesar de a ter considerado culpada e ilibado a condutora de qualquer responsabilidade. Os juízes desembargadores consideraram os veículos elétricos "um novo risco expressivo, que pode afetar os peões em geral", pois estes, habituados ao barulho dos carros de combustão, ainda não os reconhecem como um perigo.
O atropelamento aconteceu no dia 24 de setembro de 2017, cerca das 17.50 horas, e o Tribunal mostrou-se seguro de que a vítima "agiu com culpa quando iniciou a travessia da faixa de rodagem distraída, entrando na via da direita atento o sentido de marcha do QG [a viatura elétrica] sem olhar para a esquerda e sem reparar nos veículos automóveis que circulavam nesse sentido de trânsito, tendo sido colhida na faixa de rodagem (...)". O acórdão sublinha que o peão "foi imprudente ao dar início à travessia da estrada sem ter observado previamente se o podia fazer em segurança (...)".
Novo risco
O cerne da questão está, no entanto, para o TRP, segundo o acórdão de 14 de julho, no facto de se tratar de um carro elétrico, que no nosso país "representa ainda uma fatia pouco significativa no conjunto de veículos (...) de tal modo que a generalidade dos peões ainda não se habituou à sua presença e a lidar com as suas características especiais, designadamente ao seu movimento tendencialmente silencioso".
No entender dos desembargadores, "os peões valorizam ainda, de modo muito significativo, o ruído dos motores dos automóveis como forma de pressentirem o perigo da sua aproximação, confiando automaticamente na audição, desvalorizando algumas vezes o sentido da visão, aquele que melhor informação nos pode transmitir". "É uma conduta errada" concluem.
O alerta do TPR estende-se ainda aos condutores que "devem estar cientes" dos perigos, "enquanto novos e mais adequados hábitos de segurança rodoviária se vão instalando progressivamente na população em geral". O caso chegou à Relação após a condutora e a seguradora terem sido absolvidas em primeira instância. Os pais da vítima exigiam uma indemnização de 150 mil euros e interpuseram recurso, mas a Relação quantificou a indemnização em 27 400 euros, correspondente "à medida do risco causal do acidente imputável à circulação do automóvel".
Ao JN, Carlos Barbosa, presidente do Automóvel Clube de Portugal, referiu, indignado, que o acórdão "permite fazer tábua rasa do Código de Estrada" porque, mesmo dando o peão como culpado e absolvendo o condutor, este é penalizado, pois é o responsável do veículo. E a Associação dos Cidadãos Auto-Mobilizados, pela voz de Manuel João Ramos, recordou que os elétricos "são tão perigosos" como os carros com motor de combustão.
Técnica
Novos modelos têm avisador acústico
Desde julho de 2019 que os novos modelos de veículos elétricos e híbridos estão obrigados a emitir um som quando é engrenada a marcha-atrás ou quando circulam abaixo dos 20 quilómetros por hora (assume-se que a partir dessa velocidade o atrito dos pneus gera som suficiente para alertar os peões). Igual obrigatoriedade foi imposta aos veículos novos vendidos a partir de julho deste ano. Para isso é usado o AVAS (sistema de alerta acústico de veículos). O sistema, podia ser desligado, mas tal prática foi proibida.
Pormenores
Peões descuidados
O acórdão do TRP considera que a ausência do ruído típico dos motores "leva facilmente os peões de normal condição a convencerem-se que à ausência daquele ruído corresponde a ausência de veículos, agindo descuidadamente (...)".
Risco do veículo
O Tribunal da Relação socorreu-se de diversos acórdãos, incluindo do Supremo Tribunal de Justiça, conformes com o Direito Comunitário, que vão "no sentido de a admissibilidade do concurso do facto do lesado ou de terceiro, já não com a culpa do dono ou do condutor, mas com o risco do veículo".