Durante pelo menos dois anos, um deficiente profundo, com comportamento autista, viveu num quarto imundo, com uma cama coberta apenas com um plástico, preso por corda a uma cadeira de rodas e deixado, com fome e a roupa urinada, à chuva e ao frio.
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Vários familiares, vizinhos, três técnicas sociais, o presidente da junta de freguesia, o padre, a médica de família e até a Segurança Social (SS) sinalizaram o caso, mas o homem, de 64 anos, só foi resgatado graças a uma denúncia anónima feita à Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV), que levou a GNR, em 2019, à casa situada em Airães, Felgueiras.
Agora, Inácio Teixeira, de 71 anos, tutor e primo do deficiente, foi condenado a uma pena de dois anos e quatro meses de prisão, mas suspensa, pelo crime de violência doméstica (por omissão). Ficou ainda obrigado a pagar uma indemnização de dois mil euros à vitima, que, porém, morreu em outubro do ano passado, quando já estava institucionalizado.
No Tribunal de Felgueiras, o condenado negou os maus-tratos e garantiu que, com a esposa, tratava do primo como se fosse um filho e que, se não o tivesse acolhido, este teria morrido. Testemunho que levou o juiz Paulo Souto a classificá-lo como "uma pessoa simples, muito educada", mas sem "qualquer competência ou aptidão para tratar do primo". "Disso não temos dúvidas", frisou.
O juiz optou por não se pronunciar sobre a atitude de todas as entidades que tiveram contacto com o caso, mas explicou que a sentença aplicada sustentou-se nos depoimentos dos seus responsáveis. Nomeadamente, no de Liliana Carvalho, coordenadora do serviço de atendimento da Associação para o Desenvolvimento Integral de Barrosas, que visitou Armindo quatro ou cinco vezes e que sugeriu que este beneficiasse do serviço de apoio domiciliário da instituição. Inácio Teixeira começou por aceitar, mas recusou a ajuda quando soube que esta tinha um custo de 60 euros mensais.
Resgatado pela GNR
Testemunho importante foi também o da médica de família Cláudia Carvalho, que, em março de 2019, encontrou Armindo ao frio e com as calças urinadas. Nessa consulta também lhe viu uma ferida nas costas tratada de forma "rudimentar", com algodão e fita cola. Vítor Vasconcelos, presidente da Junta de Freguesia de Airães, e Abílio Barbosa, padre daquela paróquia, foram outros que confirmaram, em tribunal, que Armindo vivia em condições desumanas.
Embora todos soubessem do que se passava, só uma denúncia anónima à APAV fez com que o caso chegasse ao Ministério Público (MP)e fosse espoletada a intervenção da GNR. A primeira aconteceu a 8 de novembro de 2019, dia em que, apesar da temperatura rondar os 8 graus Celsius, Armindo estava no exterior da habitação, debaixo de uma varanda, vestindo umas calças de fato de treino, uma t-shirt e um casaco de ganga. Quatro dias depois, quando foi resgatado pelos militares do Núcleo de Apoio a Vítimas Específicas de Penafiel da GNR, a vítima continuava com as mesmas roupas, agora molhadas e urinadas, e voltou a pedir pão, mal avistou os guardas.
Processo
Segurança Social sinalizou caso em 2018
Uma meningite na infância fez com que Armindo fosse declarado interdito em 2001 e que, em 2018, Inácio Teixeira fosse nomeado tutor pelo MP. Há um ano, a SS esclareceu que a situação "foi sinalizada em dezembro de 2018" e que, desde então, "começaram a ser efetuadas as diligências necessárias". "Inicialmente, o casal de cuidadores demonstrou alguma disponibilidade para colaborar com os serviços no sentido de melhorar as condições do Armindo, enquanto se diligenciava no sentido de encontrar uma resposta ao nível da colocação institucional. No entanto, foi adotando progressivamente uma postura de resistência e de pouca colaboração. Face ao exposto, em outubro de 2019, procedeu-se à denúncia da situação ao MP e à retirada de Armindo da habitação", referiu a SS. Na sentença lê-se, contudo, que tudo começou com uma denúncia anónima.
Pormenores
Caso denunciado
O presidente da Junta de Freguesia de Airães, Vítor Vasconcelos, e o pároco Abílio Barbosa, também presidente da Associação Social e Paroquial local, reconheceram ao JN que o caso era do conhecimento público. Garantem ainda que foi denunciado a diferentes autoridades.
Vizinhos sabiam
Na rua onde os dois primos residiam, quase todos os habitantes viram várias vezes Armindo no exterior da habitação, sentado numa cadeira de rodas, com pouca roupa, ao frio ou à chuva e a berrar, em queixume, até altas horas da noite.