Homem da Maia comprou carro a vendedor de Leça que usou os seus documentos para fazer contrato com Via Verde. Tribunal reconheceu a burla em 2021, mas a penhora continua ativa.
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Um munícipe da Maia foi comprar um carro a um stand de Leça da Palmeira, onde o vendedor acedeu aos seus documentos pessoais, que fotocopiou e veio a usar para celebrar um contrato de Via Verde, à revelia do cliente. Por este facto, o vendedor vai começar a ser julgado, esta semana, por burla e falsificação de documentos, mas o cliente continua com o ordenado penhorado, por conta de uma dívida de 4100 euros em portagens e juros, de viagens de autoestrada que não fez. E isto apesar de o Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto ter extinguido, há quase um ano, os processos sobre as dívidas de portagens, por ter concluído que o cliente foi vítima de burla.
"É um processo kafkiano! O meu cliente tem, há meses, o ordenado e o subsídio de férias penhorados, por causa do uso da Via Verde, apesar de estar demonstrado que foi outra pessoa quem utilizou a sua identidade para obter a Via Verde", comenta, ao JN, a advogada Carla Freitas. A mesma que vai representar o lesado no julgamento do vendedor de Leça da Palmeira, quinta-feira, no Tribunal da Maia, por crimes de burla e de falsificação de documento.
Esposa também beneficiou
Para celebrar o contrato de compra e venda de um carro, em 2017, o vendedor João Pereira, de 41 anos, pediu ao cliente para fotocopiar os seus cartões de cidadão e de contribuinte e uma declaração de IRS.
"Aproveitando os dados pessoais de José Couto e com vista a desonerar-se do pagamento de taxas de portagens das autoestradas por onde o próprio e a sua companheira - funcionária da mesma empresa - viessem a circular com dois veículos que lhes estavam distribuídos pelo stand, o arguido engendrou um plano para utilizar a Via Verde sem que viesse a ser responsabilizado pelas correspondentes dívidas", lê-se na acusação do Ministério Público (MP).
Fisco não dá cavaco
O arguido adquiriu dois "identificadores" de Via Verde, indicando como titular do contrato o ofendido e apondo o respetivo NIF (número de identificação fiscal). Só forneceu os seus próprios dados no que respeita à morada fiscal e ao número de telemóvel. Posteriormente, de fevereiro a junho de 2018, o arguido e a companheira circularam na A3, originando uma dívida de 199,60 euros a título de taxas e de 353,60 a título de custos administrativos, no total de 553,20 euros.
"Tais valores vieram a ser objeto de execução pela Autoridade Tributária, pelo que, acrescidos de juros de mora, coimas e custas, se cifraram em 4109,09 euros, cujo pagamento veio a ser solicitado ao ofendido e resultou na penhora do respetivo salário", diz o MP.
Em novembro de 2021, o Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto atestou que o executado fora burlado e decretou "a extinção do procedimento contraordenacional, e, consequentemente, o arquivamento dos autos". Logo no mês seguinte, a vítima invocou aquela sentença para pedir ao Fisco a suspensão da penhora. Sem resposta, repetiria o pedido, em junho, mas o Fisco voltou a não dar cavaco.
Fisco instado a extinguir penhoras
A advogada do lesado, Carla Freitas, informou a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) de que estão extintos, por decisão judicial, os processos de execução fiscal, para que as respetivas penhoras fossem suspensas e o dinheiro cobrado fosse devolvido.
Finanças e Brisa no passa-culpas
A advogada recebeu uma resposta que reputa de "surreal", a de que a AT e a Brisa "não se entendem sobre quem tem de extinguir o processo" à ordem do qual o ordenado do seu cliente continua penhorado.
Dinheiro devolvido sem juros
Quando penhora, a Autoridade Tributária cobra juros à taxa legal. Mas, se vier a devolver dinheiro indevidamente cobrado, não paga juros pelo atraso na execução da sentença, neste caso desde 2021.
Contribuintes burlados e desgraçados pelo Fisco
O diretor de uma agência bancária de Braga, com 35 anos de gestão no setor, disse ao JN que os casos de burla com roubo de identidade são frequentes e atingem quer cidadãos portugueses quer estrangeiros que aguardam autorização de residência ou receberam ordem de expulsão. As dívidas, que não contraíram, de portagens, uso de telemóveis e outras dão origem a penhoras e os bancos são obrigadas a executá-las por virem das Finanças ou dos tribunais. "Conheço casos de cidadãos que ficaram em situação de penúria e com problemas mentais graves, por causa destas burlas e pela insensibilidade do Fisco e de outras instituições face à evidência de que aqueles foram burlados", garantiu.