Bárbaro homicídio de criança de três anos à pancada e com torturas julgado esta segunda-feira em Setúbal. Entregue pela mãe como penhor de dívida por bruxaria a família.
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"A Jéssica deu-me um abraço tão forte e foi embora com a mãe, no dia em que foi entregue na casa dos homicidas". Falar da menina assassinada à pancada em Setúbal, no ano passado, por uma dívida de 250 euros da mãe, Inês Tomás, leva lágrimas aos olhos de quem se lembra dela "sempre alegre". Inês começa amanhã a ser julgada, juntamente com Cristina "Tita", o companheiro, Justo Montes, a filha, Esmeralda, e o filho, Eduardo, por crimes de homicídio qualificado, rapto, rapto agravado e ofensas à integridade física. Eduardo, que terá usado a menina para traficar droga na fralda, responde por tráfico e violação.
Cristina, do café Marés Vivas, no Jardim do Quebedo, recorda com grande emoção o momento em que viu a menina no dia em que foi entregue a "Tita", Esmeralda e Justo, como penhor de uma dívida que a mãe contraíra por serviços de bruxaria. "A Inês chegou e disse "vai dar um abraço à Cristina", e a menina deu-me um abraço tão forte, mais do que o costume, até estranhei, e agora percebo porquê", diz Cristina, que soube uma semana depois do trágico destino da menina. Ao longo de meses, Inês e a filha frequentaram o café onde a dona trocava abraços da Jéssica por rebuçados e gomas.
Clima de tristeza
A semana de 14 a 20 de junho em que Jéssica esteve em cativeiro na casa dos homicidas, no Beco do Pinhana, foi de terror para a menina. Agredida de forma brutal, foi-lhe atirado um líquido abrasivo para a cara que a desfigurou e foi usada para tráfico de droga. A autópsia identificou 125 ferimentos no seu corpo (ver texto ao lado). Colocaram-lhe até cocaína à força dentro do corpo.
Durante essa semana, a mãe chegou a visitá-la em casa dos sequestradores, mas nada fez, nem alertou ninguém. No dia da morte, Inês foi buscar a filha à Praça do Quebedo, recebendo-a dos braços da família Montes, já moribunda. Em vez de ir ao hospital ou pedir ajuda - estava a meia dúzia de passos da Polícia Judiciária e da GNR -, foi para casa e deitou a menina. Só cinco horas depois voltou ao quarto para ver como Jéssica estava. Foi o seu companheiro, ao chegar, quem chamou o 112, contra a vontade de Inês.
Desde o crime, abateu-se um clima de tristeza na zona histórica de Setúbal. Ninguém envolvido foi poupado, nem sequer Paulo Amâncio, companheiro de Inês, que, apesar de a investigação o ter ilibado, passou a ser persona non grata no bairro onde vive.
Junto de sua casa, onde vivia com Inês e Jéssica, Paulo deixou de ser bem-vindo na sede do Clube Desportivo dos Amarelos, no Bairro Santos Nicolau. Várias pessoas, sob anonimato, disseram ao JN que o pescador foi ali agredido poucos dias depois do crime. Jéssica era querida por todos, brincava no parque infantil em frente à sede ao fim de semana, enquanto Inês e Paulo bebiam o seu café.
Cristina não perdoa Inês. "Ela pode dizer que é fraca de cabeça, mas tinha a PJ e a GNR à porta de casa e podia muito bem ter ido lá pedir ajuda, em vez de andar nos karaokes enquanto a filha era espancada", acusa.
Mãe pediu perícia psiquiátrica mas tribunal recusou
Inês Tomás, em prisão preventiva por crime de homicídio qualificado por omissão, por nada ter feito para travar os homicidas, como exigiria o seu dever de mãe, pediu ao Tribunal de Setúbal a realização de um perícia psiquiátrica, no sentido de ver a sua imputabilidade reduzida durante o julgamento, mas o tribunal negou.
No requerimento, a arguida alegou que tinha dificuldades em se situar no tempo e no espaço, confundindo também distâncias.
Para além disso, disse ter dificuldades cognitivas e um discurso incoerente. O tribunal recusou mandar fazer a perícia. No seu entender, nenhum daqueles sintomas foi percetível durante o interrogatório judicial na sequência do qual foi colocada em prisão preventiva por um juiz de instrução.
No dia 19, um dia antes da morte, Inês Tomás foi à casa de "Tita" para ver a filha, o que lhe foi permitido. Encontrou-a "despida, apenas com a fralda colocada, prostrada, sem abrir os olhos, sem falar, com o corpo repleto de hematomas, queimaduras na face (nariz e buço) e uma grande pelada na cabeça", descreve o Ministério Público na acusação.
Naquele momento a menina começou a ter convulsões e Inês foi buscar uma colher para a colocar na boca e impedir a asfixia. Foi avisada de que só veria a filha quando pagasse a dívida. Inês voltou para a sua casa e à noite saiu com o seu companheiro, para um bar de karaoke. Este julgava que a menina estava num ATL.
Autópsia encontrou 125 feridas no corpo
Menina violada para transportar droga no corpo
Em seis páginas do relatório da autópsia que consta na acusação aos alegados homicidas de Jéssica, o Ministério Público (MP) aponta 125 golpes no corpo da menina, incluindo o derrame de um produto abrasivo na face que lhe removeu por completo a pele do nariz e buço. Só na cabeça, são 25 os golpes, outros 60 nos braços e pernas, 30 no peito, seis no abdómen e cinco na zona genital.
Cristina e os filhos desta, Eduardo (o único em liberdade) e Esmeralda, de acordo com o MP, na semana de 14 a 20 de junho, utilizaram a menina como "mula" de droga e violaram-na, introduzindo-lhe cocaína no ânus, numa viagem entre Leiria e Setúbal.
Moribunda
A 20 de junho, Cristina e Esmeralda devolveram Jéssica moribunda à mãe. "Estava enrolada numa manta e com óculos de sol colocados no rosto, permanecendo sem se mexer, falar, com os olhos sempre fechados, hematomas nas pernas, com a zona da testa inchada, grande pelada no couro cabeludo e a zona do rosto toda ensanguentada, inclusivamente, com uma queimadura no nariz e buço". Ainda assim, exigiram-na de volta: "Quando a menina melhorar, entregas novamente, senão a gente mata-te".
Em maio, a menina já tinha sido entregue aos raptores durante dois dias por causa de uma primeira dívida de Inês por um serviço de bruxaria no valor de 100 euros. Ela conseguiu pagar, mas quando Jéssica lhe foi devolvida, estava tão maltratada e ferida, que "apenas se alimentou de líquidos durante uma semana", pode ler-se na acusação. Isso não impediu que, a 14 de junho, Inês a entregasse de novo. Desta vez, não sobreviveu.