Associação queixa-se de "impunidade total". Regulador diz que já removeu "mais de uma centena" de vídeos promocionais de sites clandestinos.
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Youtubers e streamers portugueses têm publicitado, ao longo dos últimos anos, a troco de comissões, sites ilegais de apostas junto dos seus seguidores, incluindo menores de idade e pessoas vulneráveis que se autoexcluíram do jogo online. A denúncia é feita pelo vice-presidente da Associação Portuguesa de Apostas e Jogos Online (APAJO), Ricardo Domingues, e confirmada pelo Serviço de Regulação e Inspeção de Jogos (SRIJ), que diz receber regularmente denúncias. "O clima de impunidade é total", alerta Ricardo Rodrigues.
Para jogar online é necessário cumprir vários requisitos, nomeadamente associados à abertura de conta e verificação da identidade. No entanto, nas casas ou sites de apostas ilegais, estas diretrizes nem sempre são cumpridas. Além de ajudarem a "canibalizar" receitas das casas licenciadas, alguns youtubers põem em risco o mecanismo de autoexclusão dos jogadores viciados, quando promovem estes sites em plataformas como o YouTube ou a Twitch.
"Tem de haver entidades competentes a atuar e, sobretudo, a fiscalizar. O SRIJ faz esse papel, mas não tem havido grandes consequências do outro lado. É preciso um exemplo e multas pesadas. Houve a remoção de alguns conteúdos pelo YouTube, mas não houve ação por parte das entidades que deveriam ter investigado. Quem infringir a lei tem de pagar", alerta Ricardo Domingues, apontando o dedo a sites como a "Bettilt" ou a "1xBet".
Crimes de burla
Em causa poderão estar ilícitos como burla ou exploração ilícita de jogos e apostas online, mas não só. "Mesmo o jogo legal tem regras apertadas de publicidade. Nenhum operador pode prometer resultados milagrosos ou ganhos fáceis, afirma, ao JN, o advogado Filipe Mayer. O especialista na área do jogo online explica que o regulador até tem tentado o "encerramento" e a "abertura de processos-crime contra essas casas de apostas ilegais", mas reconhece que, "no mundo digital, é sempre muito difícil fazer cumprir a lei". "Grande parte delas está sediada em Curaçao [Caraíbas] ou noutras jurisdições onde é possível abrir uma conta apenas com o e-mail", acrescenta Ricardo Domingues.
Comissões avultadas
Questionado pelo JN, o SRIJ explica que tem desenvolvido "ações de sensibilização junto das plataformas", para que a publicidade seja retirada e que já removeu "mais de uma centena de vídeos que efetuavam apelo ao jogo em sites de jogo ilegal".
Os bónus e as "odds" (probabilidades) levam os jogadores a escolher casas ou sites ilegais que, como não pagam impostos, oferecem preços "mais convidativos", conseguindo avultados lucros que se refletem também nas comissões pagas aos youtubers que as promovem. Estes recebem por cada apostador que captam, mas também por cada vez que ele joga ou deposita dinheiro na sua conta.
Para travar os infratores, Domingues sugere o bloqueio dos pagamentos, algo que "já acontece no Norte da Europa e no Reino Unido", alertando ainda para a necessidade de "dar mais poderes ao SRIJ". O dirigente da APAJO, que representa nove dos 15 operadores do mercado regulado (cerca de 95% do volume de negócios), critica ainda a limitação do catálogo de apostas autorizadas em Portugal. "A partir do momento em que se inclui no mercado legal uma maior oferta, começa a não haver grande incentivo para as pessoas irem apostar num operador ilegal", frisa.
665 operadores ilegais encerraram atividade desde 2015
Desde a entrada em vigor do Regime Jurídico dos Jogos e Apostas Online, em 29 de junho de 2015, e até 30 de junho de 2020, foram enviadas 665 notificações a operadores ilegais de jogo online para encerrarem a sua atividade em Portugal. 626 sítios na Internet acabaram bloqueados por continuarem a disponibilizar jogos e apostas online, mesmo tendo sido notificados para cessar atividade. No total, foram efetuadas 14 participações junto do Ministério Público para efeitos de instauração dos correspondentes processos-crime.
Catorze mil assinaram uma petição solicitando à PJ que investigue os "esquemas ou pseudonegócios" praticados por influenciadores digitais. Pedem ação contra esquemas "altamente aliciantes" e que permitem "o enriquecimento desonesto".
Numeiro encerra consultora
O youtuber Numeiro, que recentemente encerrou a sua consultora de apostas desportivas e através do qual, alegadamente, vendia prognósticos de futebol a troco de centenas de euros, chegou a promover num grupo do Telegram a 1XBet, uma casa de apostas que não tinha licença em Portugal.
Removidos vídeos a influenciadores
Sirkazzio, Wuant, Tiagovski ou Windoh, que recentemente esteve envolto em polémica por ter vendido um curso de criptomoedas a 400 euros, são outros exemplos de youtubers que já viram os seus vídeos removidos do YouTube.
Quem está legal?
Em Portugal, existem 15 entidades licenciadas para jogo online: Betclic, Bet, Estoril Sol Casinos (Casino Estoril, Casino Lisboa e Casino da Póvoa), Pokerstars, Casino Portugal, Casino Solverde, Nossa Aposta, Placard.pt, Luckia, 888, Betano, Moosh, Betway, Bidluck e Bacanaplay.
Jogo saudável
Vários operadores legais têm desenvolvido campanhas de jogo responsável. "Para este negócio ser sustentável, tem de haver um relacionamento com o jogo saudável e moderado. Isso não existe com os operadores ilegais. Há sempre um intuito de maximização das receitas a curto prazo", diz Ricardo Domingues.
Joga-se no legal e ilegal
Um estudo encomendado pela APAJO, em 2020, concluiu que metade dos portugueses jogava simultaneamente com ofertas legais e ilegais. "Temos cerca de metade do mercado sobre o qual o Estado não cobra impostos", refere Ricardo Domingues. Com casinos e espaços onde se pode apostar fechados, muitos utilizadores "migraram para o online".
Dependência
Mais pessoas pedem para serem barradas do jogo online
O crescimento das receitas geradas pela atividade de jogos e apostas online e dos novos registos foi acompanhado de um aumento significativo de jogadores autoexcluídos durante os meses da pandemia. De acordo com o relatório do Serviço de Regulação e Inspeção de Jogos (SRIJ), cerca de 62 mil pessoas estavam barradas da prática do jogo pela Internet em setembro do ano passado. Não só o confinamento como a tentativa de obter um rendimento extra favoreceram o abuso e potenciaram a dependência: os pedidos de consulta junto do Instituto de Apoio ao Jogador (IAJ) dispararam.
"Um pedido de autoexclusão significa que houve, de facto, um descontrolo significativo e repetido", sublinha Pedro Hubert, psicólogo e coordenador do IAJ. A suspensão pode ser requerida para um período de entre três e seis meses, ou por tempo indeterminado, como acontece com a maioria dos casos (mais de 80%).
No terceiro trimestre de 2020, o número de jogadores autoexcluídos cresceu quase 45% face ao período homólogo do ano anterior. Pela primeira vez desde que há registos, o aumento foi sempre superior, quer ao de novos registos quer ao de jogadores com prática de jogo (que realizaram pelo menos uma aposta em jogos de fortuna ou azar ou em apostas desportivas à cota online) nos três trimestres do ano passado. Ao contrário das duas outras categorias, os autoexcluídos estão a subir de forma constante desde que, em 2017, o SRIJ faz contas à atividade do jogo online.
"Houve um aumento muito significativo ao longo destes anos e em particular durante a pandemia, por várias razões: a depressão e a ansiedade, provocadas pelo isolamento, o objetivo de obter algum tipo de recompensa emocional, ou de escape de uma realidade que é difícil, ou a vontade de resolver o problema financeiro através do conhecimento que tem sobre o jogo", observa Pedro Hubert, psicólogo e coordenador do IAJ.
Relação problemática
Os números "são preocupantes e devem servir de alerta", sublinha. "Indiciam que há mais pessoas a desenvolverem uma relação problemática com o jogo e também que há uma tomada de consciência dessa relação que está a ocorrer e que corresponde a um pedido de ajuda", concretiza João Goulão, presidente do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências.
Neste momento, os cinco psicólogos do IAJ que prestam consulta de apoio têm a "agenda cheia". No ano passado, revela o coordenador, o aumento da procura foi "enorme" por parte de pessoas com problemas de adição ao jogo online, "sobretudo no âmbito das apostas desportivas, do casino online e ao nível do "gaming" - os comportamentos aditivos em relação aos vídeojogos também estão a crescer".
"Há pessoas que estavam numa fase de risco, de abuso, e que, durante a pandemia, passaram para a dependência. Mas também há quem estivesse na fase recreativa e tenha começado a jogar abusivamente e que, muito possivelmente, vai continuar este percurso até chegar à adição dentro de um, dois ou três anos", acrescenta.
84,2 milhões de euros de receita bruta gerada pela atividade de jogos e apostas desportivas online, no terceiro trimestre de 2020. Foram mais 15,5 milhões do que no trimestre anterior (68,7) e mais 30,1 milhões face o período homólogo de 2019 (54,1).
Um direito dos jogadores
O mecanismo da autoexclusão é um direito dos jogadores consagrado no Regime Jurídico dos Jogos e Apostas Online, através do qual se pretende prevenir o jogo excessivo e evitar comportamentos e práticas aditivas.
Como pode ser exercido?
A autoexclusão pode ser requerida no site da entidade exploradora em que o jogador está registado ou no site do SRIJ, que implica o impedimento de jogar em todas as entidades exploradoras.
Durante quanto tempo?
O prazo da autoexclusão pode ser fixado por um período determinado (nunca inferior a 3 meses), ou por tempo indeterminado. Em qualquer dos casos, desde que cumprido o período mínimo, o jogador pode antecipar o termo da autoexclusão e retomar a prática de jogos e apostas online.