O Gabinete de Recuperação de Ativos, que funciona na dependência da direção da Polícia Judiciária, apreendeu 22,8 milhões de euros a suspeitos de crimes graves em 2018.
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Mas o próprio coordenador do Gabinete de Recuperação de Ativos (GRA), Carlos Costa, considera aquele montante insatisfatório, justificando-o com o facto de os magistrados do Ministério Público (MP) solicitarem a colaboração do gabinete em poucos processos. "Impõe-se aos magistrados, cada vez mais, lançar mão destes instrumentos legais" de confisco dos produtos e vantagens do crime, avisara já a procuradora-geral da República, Lucília Gago.
Em quatro meses de mandato, a nova procuradora-geral já invocou várias vezes a necessidade de apostar no confisco, tratando-o como a quarta via das "modernas sociedades democráticas" para fazerem justiça (na área criminal), a par das penas, das medidas de segurança e da reparação das vítimas. "As consequências jurídicas do crime não se podem quedar pela mera punição da sua prática, mas devem estender-se à reposição do património do agente ao status quo ante[rior] à prática do crime", defendeu, há um mês, na abertura do ano judicial.
A mensagem de Lucília Gago é música para os ouvidos de Carlos Costa. O inspetor da PJ coordena o "ativo do Estado" concebido para responder à necessidade invocada pela procuradora e entende que o mesmo "não está a ser devidamente rentabilizado", devido ao aparente alheamento da magistratura, hierarquizada, do MP. Por isso, conta com a procuradora-geral e com o novo diretor do DCIAP - Departamento Central de Investigação e Ação Penal, Albano Pinto, para mudar o panorama.
O GRA nasceu no final de 2012, com a missão de proceder, a pedido do MP, à identificação, localização e apreensão de bens ou produtos relacionados com crimes, a nível interno e internacional". E tem apreendido à volta de 20 milhões por ano, com exceção de 2015 e 2016 (ver infografia), assinala Carlos Costa, explicando que os valores destes dois anos foram anormalmente altos, por força dos processos do BES, e devem ser relativizados. Tanto mais que, assume, os arrestos do caso BES foram pedidos pelo juiz de instrução e não, como seria natural, pelo MP.
Carlos Costa informa também que, entre 2017 e 2018, os pedidos do MP ao GRA diminuíram (de 135 para 17), ao contrário dos de países estrangeiros (120 para 148). E um dos sinais mais fortes de afastamento do GRA vem do departamento do MP que trata dos processos com valores mais avultados: dos 31 pedidos de intervenção feitos ao GRA Lisboa em 2018, só sete foram do DCIAP. "O GRA Lisboa devia trabalhar quase exclusivamente para o DCIAP", comenta Carlos Costa.
"Aversão às novidades"
Numa altura em que não estavam fechadas as contas de 2018, Euclides Dâmaso, magistrado jubilado do MP que foi responsável pela criação do GRA, falou de conservadorismo. "Há sempre, entre nós, uma aversão às novidades", justifica, lembrando o sucedido com as formas especiais de processo, como a suspensão provisória. "Demorámos 20 anos a praticar isso de forma aceitável. Foi preciso quase ameaçar que não haveria notas máximas para quem não usasse aqueles instrumentos nas bagatelas penais", compara.
"Qualquer mecanismo tem o seu tempo de maturação", corrobora o presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, António Ventinhas, defendendo uma "aposta na formação e sensibilização".
Como chegar ao dinheiro sujo
Perda clássica tem alcance difícil - A chamada "perda clássica" é um instituto antigo, previsto no Artigo 110.º do Código Penal, em que se declaram perdidos a favor do Estado os produtos e as vantagens do crime. Tal significa que o tribunal tem de dar por provada uma conexão entre o crime e o bem a apreender. Ou seja: que o ilícito pelo qual o arguido é condenado foi aquele que lhe permitiu obter determinado bem. Um exercício difícil, nomeadamente quando o arguido manteve a atividade delituosa de forma continuada.
Perda alargada inverte ónus - O instituto da "perda alargada" foi introduzido pela Lei n.º 5/2002, que foi produzida sob a égide do então ministro da Justiça, António Costa, e teve forte impacto no meio jurídico. A lei estabeleceu que, em caso de condenação de um indivíduo por um dos crimes graves nela previstos, "e para efeitos de perda de bens a favor do Estado, presume-se constituir vantagem de atividade criminosa a diferença entre o valor do património do arguido e aquele que seja congruente com o seu rendimento lícito [declarado ao Fisco]". No fundo, o legislador aceitou atacar o enriquecimento inexplicável, permitindo a apreensão de bens cuja proveniência o suspeito não prove ser lícita.
A vitória do moderno em guerra de juristas - O magistrado Euclides Dâmaso lembra que a perda alargada "sofreu um violentíssimo ataque da doutrina, sobretudo de Damião da Cunha, que disse, no Centro de Estudos Judiciários, que ela era inconstitucional". "Foi o suficiente para toda a gente se encolher", diz. Mas a defesa desta tendência moderna do direito, protagonizada por magistrados como o próprio Euclides Dâmaso e João Conde Correia, e a jurisprudência de tribunais nacionais e do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem acabaram por dissipar as dúvidas. "A presunção não serve para declarar a culpabilidade do arguido, mas apenas para calcular o montante que deverá ser confiscado", argumentou Conde Correia, à época, na revista "Julgar".
"Estamos a levantar voo desde 2011" - O Gabinete de Recuperação de Ativos e o Gabinete de Administração de Bens foram criados pela Lei n.º 45/2011, que teve na sua génese o trabalho de um projeto ("Fénix") financiado pela União Europeia e coordenado pelo magistrado Euclides Dâmaso. "Até 2011, praticamente não se fazia recuperação de ativos", recorda Euclides Dâmaso, comparando: "Ainda não estamos em velocidade de cruzeiro, mas estamos a levantar voo, desde 2011".