<p>Garante que o Bloco não mudou de natureza por assumir hoje um discurso de poder, mas insiste que é possível uma maioria de Esquerda. Em entrevista ao JN, Francisco Louçã põe de parte o apoio a um Governo do PS, que "desistiu das políticas de Esquerda". </p>
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De que falava ao telefone, tantas vezes, com Sócrates, durante os debates quinzenais?
Não era nos debates quinzenais mas noutras presenças do primeiro-ministro no Parlamento. Discuti muito em detalhe, por exemplo, a situação na Autoeuropa, quando havia a ameaça de lay off, ou no Arsenal do Alfeite. Por várias vezes tomei a iniciativa de falar com ele para discutir projectos do BE sobre política fiscal, em particular sobre segredo bancário. Procurei sempre a possibilidade de conseguir uma situação mais avançada.
É habitual falarem?
Aconteceu com regularidade no Parlamento. Fora disso, é raro.
Têm relações pessoais?
Tenho respeito pelos meus adversários políticos, mas nunca tive relações pessoais nem de convívio com José Sócrates. A não ser no tempo do Governo PSD/CDS, quando discutimos a preparação do referendo sobre o aborto. Foi a primeira vez que tive contactos pessoais com ele. A Direcção do PS, de Ferro Rodrigues e Vieira da Silva, concordava reticentemente com a ideia de promover a petição popular para o referendo. Quando começou a petição, convidei Sócrates a vir para a rua comigo e com independentes, para uma banca de recolha de assinaturas. Ele aceitou logo. Foi a primeira vez que discuti com ele sobre uma iniciativa política concreta. São relações normais, sem prejuízo da divergência que é bastante notória.
Já disse que nunca fará coligações com o PS, mas disponibiliza-se para apoiar medidas de Esquerda de um Governo socialista. Há sinais, expressos em medidas sociais, que podem ser considerados uma viragem à Esquerda. O BE está disponível para alargar esse apoio?
Portugal tem um problema de governabilidade, que é a política da maioria absoluta. Tem provocado uma tragédia social, acentuando as condições que levam a fazer disparar o desemprego. É o resultado de um regime económico e social que se ajusta através do despedimento e da precarização das relações de trabalho. O BE procura responder a estas questões, dizendo que que tem de mudar a visão para o país, num conjunto de medidas concretas e urgentes. É preciso uma maioria para governar e ela não se faz com uma coligação que represente a amarra às políticas que provocam a crise. Por isso não faremos governo com o PS.
Haverá apoio sem amarras?
Não haverá apoio. Mas, como sempre fizemos, os nossos votos nunca faltarão às políticas de Esquerda. O PS é que tem desistido dessas políticas. A grande disputa que tivemos com o PS foi o Código de Trabalho, que resumia toda a visão da sociedade, das relações de forças destruídas, da solidariedade social. Não podemos apoiar um Governo que promove a destruição das relações sociais na produção. Pelo contrário, precisamos de um Governo que modernize a produção, de forma a combater a precariedade e a diminuir a pobreza. Houve boas medidas, como o complemento solidário para idosos e o rendimento mínimo, mas a política do PS foi genericamente no sentido contrário. Por exemplo, a privatização da GALP, que entregou a Américo Amorim e a José Eduardo dos Santos um grande activos estratégico nacional. O Governo queria continuar essa política na EDP, no resto da Galp, nas Águas de Portugal.
O BE, pela primeira vez, assume a possibilidade de fazer parte de uma solução governativa. Mudou de natureza, já não é um partido de protesto?
Não, somos exactamente a mesma coisa. Para querer uma maioria, é preciso coragem de protestar e assumir a responsabilidade de apresentar alternativas. Queremos ser medidos por isso. Não deixaremos de protestar contra o terminal de contentores de Alcântara e a sua concessão por ajuste directo. Não deixaremos de protestar contra a economia do desastre social. O que a recessão provou é que o protesto não conseguiu parar os piratas que estão na costa, nem impedir o assalto financeiro e económico de que as sociedades pagam um preço fortíssimo. O BE passou para 11%, nas últimas eleições...
Não corre o risco de ter crescido demais e agora não conseguir manter essa ascensão?
As eleições dirão. Tanto estamos preparados para aprender com as vitórias como com as derrotas. Portugal precisa de uma Esquerda maioritária? Precisa. Precisa de uma política socialista? Precisa. De uma resposta à recessão? Sem dúvida. É para isto que nós queremos contribuir. É por isso que procuramos uma Esquerda grande, de diálogo entre todos os que partilham o compromisso da urgência de políticas socialistas.
Nas próximas legislativas, qualquer resultado abaixo dos 11% e do PCP será uma derrota?
Não, não nos comparamos com o PCP nem com os 11% que conseguimos nas europeias.
Está a baixar fasquia.
Não. Somos cuidadosos: houve 62% de abstenção nas europeias. Não extrapolamos resultados, mas queremos subir em relação às últimas legislativas.
Reconhece que será difícil? Tradicionamente, o BE não consegue entrar no eleitorado do PCP. Por outro lado, pode funcionar o voto útil no PS.
Não creio. O voto cínico, que é "como não concordas comigo, vota em mim para eu continuar a política de que tu totalmente discordas", continua a existir, mas é residual. O voto no BE é popular, socialmente organizado, cada vez mais forte.
O objectivo é disputar o lugar de terceira força política ?
Nós disputamos o primeiro lugar. PS e PSD são os criadores do desastre económico. Não podemos continuar amarrados à alternativa entre PS e PSD. É preciso uma estrutura política totalmente nova.
Prevê que o próximo Governo não ser duradouro...
Certamente não será de maioria absoluta.
Esse cenário pode revalorizar o papel do presidente da República e alterar a relação de forças?
Creio que o presidente continuará a sua política, a convergência estratégica sobre as questões que o aproximam do PS.
É o presidente que se aproxima do PS ou o PS do presidente?
Os dois. Há grande convergência. Por exemplo, sobre a reforma da Segurança Social. Todos os estudos confirmam que as pensões futuras vão perder 46 a 50% e que a idade da reforma será adiada sistematicamente. Há transferência de recursos dos que descontaram para os mercados financeiros. Essa perda imensa é que faz a aliança das políticas liberais. Nesta questão essencial, o presidente está de acordo com José Sócrates. Há, sem dúvida, muitas divergências. Vetou a lei da paridade…
Não é dos pensam que Cavaco Silva está a sustentar a oposição que Ferreira Leite faz ao PS?
Não, acho que têm agendas diferentes. Há proximidades. Do ponto de vista da cultura política, Ferreira Leite e Cavaco são a mesma coisa. Mas a forma de agir do presidente, no condicionamento constitucional dos seus poderes, que tem respeitado, revela uma agenda política própria, que por vezes se cruza com a do Governo em questões económicas essenciais. Não vi o presidente opor-se a nenhuma dos grandes contratos ou projectos.
O BE pode apoiar um candidato presidencial à Esquerda, mesmo que Manuel Alegre não avance?
As candidaturas são decididas pelas próprias pessoas, não as empurro, nem que as sugiro. É iimportante para a Esquerda uma candidatura que represente uma grande visão socialista de democracia responsável para o país. Até agora, temos tido uma democracia irresponsável. É preciso uma candidatura que faça convergência de opiniões de pessoas. Com esse projecto, será uma candidatura muitíssimo mobilizadora.
Mesmo que não seja protagonizada por Manuel Alegre?
Manuel Alegre provou, nas últimas eleições, ter maior capacidade para representar uma alternativa a Cavaco Silva e a Sócrates, ao situacionismo económico. Essa pulsão da luta pelo democracia social é importantíssima. Veremos como será nas próximas presidenciais, que vão ser muito importantes, no quadro de um governo de maioria relativa e de arrastamento da crise social.
A governação de Lisboa, nos últimos dois anos, foi um desastre?
António Costa chegou à Câmara numa situação de emergência. Teve constrangimentos muito fortes, em parte pelo descalabro da governação da Direita, com Santana Lopes e Carmona Rodrigues, e também porque aceitou condições impostas pelo Governo totalmente limitativas. Por isso não fez nada. Arrumou as contas, mudando o passivo de uma conta para outra.
Era o que se exigia ou não?
Era indispensável, mas era preciso tomara algumas iniciativas. Uma política tem que ser vista pelos objectivos colocados. Estava previsto rever o PDM e definir medidas fundamentais para a cidade, como uma quota de construção a custos controlados, controlar a frente ribeirinha, parar a especulação, fazer alterações nas empresas municipais. Nada disso foi feito. Há confusão nas empresas municipais, a frente ribeirinha foi cedida no negócio dos contentores de Alcântara, em relação ao qual a Câmara fechou os olhos. Deste ponto de vista, a política da Câmara é um grande fracasso.
O que é que impediu a convergência do BE com António Costa? A questão com José Sá Fernandes?
Não, isso não teve peso nenhum.
O BE apoiaria uma lista de António Costa com Sá Fernandes?
Isso é indiferente. Não temos nenhuma amargura em relação às divergências passadas. Só não fazemos acordo com o PS, porque temos muitas divergências sobre a política para Lisboa.
Não reconhece o risco de concentração de votos no PS ou, pelo contrário, de a Direita ganhar?
Não se volta duas vezes ao local do disparate, para adaptar livremente um velho ditado popular. Santana Lopes é fragilíssimo, ao contrário do que ele próprio e a Direita pensam. A candidatura dele traz um cortejo de desgovernação na cidade e a nível nacional.
É a própria Esquerda que assume ter medo de Santana.
Costa é que assume ter medo.
E muitos dos que o apoiam, como Helena Roseta.
Certo, mas o medo é o prior argumento possível. Quem tem medo não se candidata. Se António Costa vai pelo caminho do medo, é melhor fazer as malas. Em Lisboa é preciso alternativas. Foi muito importante a coligação liderada por Jorge Sampaio, uma ruptura imensa na política portuguesa. Foi um acordo preparado durante meses, com coerência, juntando as melhores ideias para a cidade. Não foi um arranjo político. Nada disso está na candidatura do PS.
O PS não é, neste momento, o principal adversário do BE?
Não. O desastre económico é que é o nosso adversário. A política concreta é o que tem feito o atraso do país. Quando digo que um ministro das Finanças do BE faria diferente e melhor, estou certo que as pessoas acreditam nisso. Fiz esta conta: comparei o valor que o Governo até agora gastou em planos de salvação da economia (120 milhões de euros) com o que oito ex-administradores receberam em indemnizações no BCP, 128 milhões. Isto é parasitagem.
Que intervenção pode o Estado? Limitar os salários dos gestores?
Sim, quando tem apoios públicos, como os EUA fizeram. No sector privado, pode determinar taxas especiais de imposto sobre prémios extraordinários. Posso garantir que um dia haverá em Portugal esse tipo de imposto. Temos dois milhões de pobres, quase todos idosos. O país que tem de olhar para a política social. E aí os riscos são imensos. Sabe-se agora que o grupo Melo vai ter o hospital de Vila Franca e o BES o de Loures por trinta anos. É uma questão de regime social.
Mas este mesmo Governo recolocou na esfera pública o hospital Amadora-Sintra.
É espantoso! Ao mesmo grupo que se lhe retirou o Amadora Sintra por indecente e má figura, por má gestão, entregou-lhe o de Braga e o de Vila Franca. A bota não bate com a perdigota. Se geriu um mal, porque é que se lhe entregam dois? Isto tem que ver com a concepção dos serviço público, que tem e ser gerido com os critérios de exigência económica, de rigor extremo, e de estratégia de qualificação. Um bom ministro das Finanças, por exemplo, nunca decidiria vender a Galp, a EDP, ou entregar à Bolsa as Estradas de Portugal.
Ou fazer aquele contrato com a Mota Engil no caso dos contentores de Alcântara?
Com certeza, esse contrato é escandaloso. Até tem uma cláusula meteorologia. Ou seja, se chover e se descarregarem menos contentores, o Estado pagará a diferença. Na Galp, há outro caso parecido. A Galp declara nas contas que a parte dos seus lucros que é atribuível ao facto de ter feito baixar os preços devagar e subir muito depressa. É um assalto. Esses erros económicos provocaram a crise orçamental, que depois é reajustada, cortando-se nos orçamentos públicos.
Há vontade política para que as conclusões da comissão de inquérito ao BPN sejam aproveitadas para melhorar a supervisão?
Veremos.
Foi um fiasco neste caso ou a questão é o modelo de regulação?
É do modelo e da prática. Uma parte do crime económico estava muito escondida. Mas há formas de regulação que poderiam ter sido muito mais proactivas. Vítor Constâncio disse que nunca suspeitou de Oliveira e Costa porque ele tinha sido secretário de Estado. É em relação a essas pessoas que temos de ter toda a precaução. É preciso uma grande revolução na regulação.
Não há um caldo de cultura no sentido do "laissez faire, laisser passer"?
Absolutamente! É o liberalismo!
Isso pode mudar?
É uma luta muito difícil. O liberalismo impôs a desregulação. Quantos dirigentes políticos já ouvimos dizer que iam acabar com as off-shores?
É possível iniciativas dispersas para acabar com os off-shores ou seria necessária uma acção pelo menos europeia?
É preciso uma perspectiva europeia. Mas a UE faz mão morta sobre essa matéria, depois de grandes promessas.
A Europa não revela vontade de querer acabar com esta situação?
Não faz nada! O "caso BPN" tem mais peso em perdas na economia nacional do que o "caso Madoff" nos EUA, o maior escândalo de sempre. Se a opinião pública percebe que está a ser roubada, exige. E então sai um comunicado da Cimeira Europeia: "Vamos fazer regulação". Mas não acontece nada, porque o sistema financeiro é dono dos governos. A democracia está refém destes poderes económicos.
Mesmo depois desta crise mundial...
Não se aprendeu nada.
Não há grandes sinais de reacção da opinião pública.
Depende. Se fizéssemos um referendo nacional sobre se se deveria ter acesso às contas bancárias, para obrigar todas as pessoas a pagar o imposto que devem, o país não votaria contra.
O investimento público é a aposta do BE para o crescimento. No emprego, tem efeitos imediatos?
Investimentos como o aeroporto ou o TGV têm efeito dilatado, só depois de a recessão ter terminado. Sócrates faz do investimento público uma questão ideológica mas é um argumento táctico e tangente à realidade, porque, primeiro, cortou dramaticamente no investimento e, agora, subiu um pouco, mais ainda não está ao nível de 2005. Nós propusemos como centro do investimento público a reabilitação urbana, que tem efeito imediato no emprego e no rendimento. Se reabilitarmos 100 mil casas, as rendas vão ser mais baratas e os salário mais baixos e as pensões serão valorizadas. E respondemos ao problema da desertificação dos centros das cidades.
Avalia em 30 mil milhões de euros a fuga ao Fisco. Não reconhece que o Governo combateu a invasão fiscal?
Sim. E para ser justo, digo que até vem de trás, com Paulo Macedo, o anterior director-geral.
O levantamento do sigilo bancário é fundamental?
É, mas não está disponível. Repare que em 2008 só foi aplicado a 83 pessoas. É insignificante..