Um factura 50 milhões por ano, outro é ministro--sombra dos Transportes do Governo do ANC. O terceiro dirige o clube de futebol campeão há três anos seguidos. O último é porta-voz nacional da Polícia. Eles são portugueses ou luso-descendentes e figuras de peso na sociedade sul--africana
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O polícia bom que é polícia mau
O Português pausado de Dinis Adrião contrasta com a dimensão das suas funções. E até o mais desprevenido criminoso pode ser enganado por tamanha pacatez e serenidade. Ele é, com 41 anos, porta-voz nacional da Polícia sul-africana, uma das forças mundiais de autoridade com mais trabalho, ou não fosse este país o que apresenta os mais altos índices de criminalidade do Planeta. Mas o sonho de Dinis não era ser uma personagem do cinema norte-americano. Andar aos tiros, em altas perseguições, matar criminosos, ser um "bad boy". Ele só queria ser Relações Públicas. Mas na Polícia. "Desde miúdo que ambicionava ser polícia. Ou isso ou diplomata". Provou-se que consegue ser as duas coisas ao mesmo tempo.
Dinis nasceu em Joanesburgo. O pai é natural de Tomar e a mãe de Braga. Vieram para a África do Sul na década de 60 do século passado, com o objectivo do costume: dar o salto. O superpolícia (fez o curso em 1988) estudou Relações Públicas, na Southern Business School, por correspondência, tinha 26, 27 anos. Aos 30, tirou uma especialização em investigação criminal. Desde aí nunca mais parou. Apesar de ser um trabalho com vistas para o perigo.
"Em 2004, havia 26 mil crimes mortais por ano, na África do Sul. Em 2009, esse número baixou para 18 mil", confessa, sem esconder um orgulho que só entende quem por cá vive. 18 mil pode ser um número assustador, mas Dinis prefere ver o lado positivo da equação: houve menos oito mil mortes. Nesse hiato temporal, o contingente policial no país aumentou de 143 mil para 200 mil agentes.
Cumpriu o calvário de qualquer polícia: começou como oficial, patrulhou estradas, foi destacado para a esquadra de Cleveland. Foi promovido a detective. E lá andou, de lupa em riste, dois anos. Mas não guarda boa memória. "Gosto de reagir aos acontecimentos e não chegar depois de estar tudo acabado". Já como sargento, ingressou numa força especial, vocacionada para projectos de integração de comunidades. Trabalho árduo, de sapa, invisível. Fruto desse projecto, alcançou, em 1994, o prémio de polícia do ano. Momento que o marcou de forma indelével, por ter coincidido com a eleição de Nelson Mandela para presidente.
Mais degraus na escadaria do êxito profissional se seguiram. "Mandaram-me para Inglaterra, Holanda, Bélgica e Alemanha para estudar questões policiais, ligadas à estratégia". Lá ficou três meses. Ingressou depois no comissariado de Joanesburgo. "Uma das coisas que mais me indignavam era a falta de confiança na Polícia. Parte do meu trabalho foi recuperar essa credibilidade". Durante o apartheid, quem possuía um distintivo disparava primeiro e perguntava depois.
Aos prémios sucessivos que foi conquistando seguiu-se o ano da coroação. Em 2004, nomearam-no porta-voz nacional da Polícia sul--africana, responsável por grandes eventos. Como agora acontece com o Mundial de futebol. É ele quem decide quem diz o quê e quando. Quem sofre é a pobre da bateria do telemóvel, que tantas vezes é carregada, tantos são os e--mails com comunicações que vai recebendo. Tem de dar o OK a todos os documentos. "É uma grande responsabilidade, por isso é que estou careca", graceja.
Mas não se pense que Dinis Adrião, amante de desportos radicais, vive amarrado a uma secretária. "Se temos de pensar as estratégias temos de perceber o que se passa no terreno", sublinha. E foi numa dessas visitas ao terreno, há dias, que voltou a ter um desgosto. Durante uma perseguição policial, no Soweto, bairro nos arredores de Joanesburgo, um amigo, polícia, foi morto a tiro. "Lembro--me de chegar ao local e ver o seu corpo deitado no chão. Foi duro". E ainda mais quando o cão, que fazia parelha com o agente abatido na unidade cinotécnica, desatou a chorar ao lado do cadáver ainda morno. Dinis já perdeu 18 amigos em serviço. Nunca matou ninguém, foi uma vez esfaqueado, apenas alvejou um bandido. "Era ele ou eu". Estar vivo para contar implica, por isso, um apurado sentido de sobrevivência. "Daí eu ser tão calmo. Ser reactivo, nesta profissão, pode levar-nos ao cemitério".
O ministro-sombra dos Transportes
Chamam-lhe Manny, como, de resto, a todos os "manuéis" na África do Sul. Manny de Freitas é o luso-descendente mais respeitado da política da nação do arco--íris. Não mostra ter pejo em carregar essa cruz, porque se vê na emotividade com que fala dos projectos em que se envolveu que gosta realmente do que faz. É deputado pela Aliança Democrática no Parlamento Nacional e tem o cargo de ministro-sombra dos Transportes do Governo liderado pelo ANC. Ser ministro-sombra, na África do Sul, não é o mesmo que em Portugal. Manny tem de dominar realmente os dossiês, reúne frequentemente com o actual ministro, está por dentro da estratégia. "Porque se o Governo mudar, não se pode começar do zero", explica.
Tal como o polícia Dinis, Manny de Freitas nasceu em Joanesburgo e tem 41 anos. Os pais vieram da Madeira, na primeira leva de emigrantes, nos idos da década de 60. Nunca pensou em ingressar na política. Mas a porta abriu-se em 1994, ano de viragem no território. Aderiu ao então Partido Democrático. Fez trabalho de militante de base e, um ano volvido, nas eleições autárquicas, a sua secção propôs o seu nome. "Trabalhei muito para angariar votos". Esforço compensado, ao ter sido eleito vereador na Câmara de Joanesburgo. Em 1996, chegou à liderança da Assembleia Municipal e, três anos volvidos, entrou para o Parlamento da província de Gauteng. "Passei a ser o representante da Zona Sul, onde há mais portugueses", afiança.
Subiu, subiu, subiu. Até que, no ano passado, o líder do agora partido Aliança Democrática propôs o seu nome para o Parlamento nacional. Como aconteceu com todos os cargos a que se candidatou, também para este foi eleito. Manny olha de soslaio para algumas ideias feitas sobre a comunidade portuguesa na África do Sul. E vai directo ao assunto: "Precisamos de portugueses mais qualificados, sobretudo na política. Os portugueses têm medo, ainda são vítimas de uma cultura pós--apartheid". O regime, diz, com o qual muitos emigrantes compactuaram. "Até consigo perceber". Mandela, pese embora não ser do seu partido, é a sua referência. "É um homem extraordinário". E será que algum dia África do Sul vai ter um presidente branco? "Julgo que sim, mas só daqui a 40 ou 50 anos".
O empresário 50 milhões
Há outro "Manny" nesta história de boa-aventurança portuguesa. Manuel Moutinho de seu nome, empresário de topo no ramo da electrónica, negócio que permite à sua empresa (Mantech Electronics) facturar 50 milhões de rands por ano (cerca de cinco milhões de euros), estar cotada na Bolsa de Hong-Kong e dominar o competitivo mercado sul-africano.
Quando se ouve o discurso de Manny, percebe-se o porquê de estar onde está. Modernizou-se, cultivou várias línguas, conhece o nome de todos os cerca de 130 funcionários da empresa sediada numa pequena zona industrial de Joanesburgo (apenas cinco são portugueses, inclundo ele), não se deixou enredar pela passividade que embaraça grande parte da comunidade emigrada neste país.
Natural do Porto, tem dois filhos, que também residem e têm negócios na capital financeira da África do Sul. Depois de ter enviuvado, casou novamente, com uma portuguesa natural de Aveiro. Primeiro, passou por Moçambique, onde estudou Electrónica. Era trabalhador-estudante. Em 1985, já na África do Sul, criou o próprio negócio, gerando tal atractividade que se viu obrigado a fundir a empresa com a gigante chinesa Mobicon, cotada na Bolsa de Hong-Kong. Vendeu 51% do capital por 10 milhões de rands (cerca de um milhão de euros). Isto há dez anos.
Envolveu-se na política (criou o LUSAP, partido português na África do Sul), presidiu, durante cinco anos, à Associação Nacional de Jovens Empresários. Conheceu Mandela. "Considero-me um português de sucesso, mas felizmente que não sou o único", garante, lamentando, contudo, que a grande fatia dos portugueses continue a viver no passado.
Homem muito ponderado, elegante no trato, já está a preparar a sucessão. Um elemento designado pela Administração da empresa está a receber formação para o substituir. Nada que o apoquente. "Ficarei como chairman ou consultor". Vai duas ou três vezes por ano a Portugal visitar a família, menos do que as que tem de deslocar-se a Singapura e Hong-Kong, para reunir com os "patrões".
O segredo do seu sucesso é simples: mero intermediário, importa a bons preços e vende com uma margem de lucro que cumpre religiosamente. "Aqui não permitimos que ninguém pague a mais de 30 dias". Irredutibilidade que já lhe custou negócios. "Não me importa. Eu quero ter um lucro saudável. Não busco a facturação pela facturação". Essa, de resto, podia ser a sinopse da carreira de Manny Moutinho: buscou a sorte de uma forma saudável.
O dirigente desportivo
O à-vontade de José Ferreira, 42 anos, é uma das qualidades mais gabadas pelos amigos. Não se preocupa muito com o que pensam dele, da forma como se apresenta. O seu profissionalismo chega e sobra para calar maledicências. Natural de Santa Maria da Feira, é o português mais importante no futebol da África do Sul. Tem tido o engenho de só ter estado em clubes vencedores. Sempre soube estar bem rodeado. Cultivou essa filosofia. Hoje recebe os louros.
José chegou a Joanesburgo com seis anos. Três anos antes, Moçambique havia sido a porta de entrada dos pais na aventura africana. Perseguiu o sonho de ser advogado. Conseguiu. Casou-se tarde, com uma sul-africana de olhos claros bem mais nova do que ele, de quem tem um filho, com dois anitos. Vive numa verdadeira mansão, com piscina, numa zona bem frequentada da cidade.
"Tive a felicidade de me formar em advocacia e começar a trabalhar com uma empresa que operava no sector dos direitos desportivos". Daí até chegar a advogado da Federação Sul-Africana de Futebol foi um piscar de olhos. Lá permaneceu uma dezena de anos. Era novo. Em 2001, os Mamelodi Sundowns contrataram-no para assumir funções como dirigente desportivo. Três anos depois, Patrice Motsepe, homem mais rico de África do Sul (tem o ouro como gerador da fortuna) comprou o clube e pediu-lhe para assumir o cargo de chefe-executivo. Motsepe, mais conhecido como "Motsepevic", por analogia a Abramovic, patrão do Chelsea, gastou no primeiro ano 50 milhões de rands (cinco milhões de euros) em contratações. Valor alto para aquela realidade. "Contratámos o que havia de melhor na África do Sul e fomos buscar os melhores sul-africanos a jogar no estrangeiro". Ganhou dois campeonatos seguidos. "Ao fim desse tempo, a minha mulher ameaçou-me: ou escolhes o Motsepe ou a Yolanda Ferreira". Escolheu a Yolanda e demitiu-se. Julho de 2007.
O Supersports United, clube de Pretória, viu aí uma oportunidade para o contratar. E fê-lo. Ganhou mais três campeonatos da primeira divisão sul-africana. O actual clube é propriedade do maior canal por cabo de desportos no país. A Liga de Clubes é liderada pelo presidente do Orlando Pirates (uma das principais equipas, a par do Kaiser Chiefs). "É o Pinto da Costa cá do sítio", ironiza, do alto do seu benfiquismo empedernido. "O futebol aqui é tecnicamente muito avançado, mas tacticamente são muito inexperientes", contemporiza.
O futebol, precisamente, ainda vai sendo o único factor de união da comunidade portuguesa. "As novas gerações não falam Português mas andam com camisolas do Benfica, do F. C. Porto ou do Sporting", exemplifica. "Por vezes, parece que os portugueses daqui ainda estão no tempo de Salazar".