Apercebeu-se de uma doença desconhecida, avisou os amigos e teve a Polícia à porta. Aceitou calar-se e, semanas depois, morreu com a infeção para a qual tinha alertado. Falamos de Li Wenliang, o médico chinês que deu conta do novo coronavírus. Não surpreende que os tributos a ele prestados na Internet tenham sido calados também.
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Li Wenliang, 34 anos, casado, pai de um filho à espera do segundo, era oftalmologista num hospital da cidade chinesa de Wuhan, foco do surto surgido no fim do ano passado. Hoje é lembrado como mártir da nova infeção que já matou mais de 600 pessoas, número que agora engrossa.
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Atento, deu conta da entrada no hospital de sete funcionários do mercado de Wuhan com sintomas como os da pneumonia atípica que fez mais de 800 mortos em 2002 (SARS), a um grupo online de colegas médicos. O símbolo do Partido Comunista da China que Li exibia na bata de médico não fazia imaginar que tivesse algum interesse em desafiar o poder: pediu até que a mensagem não saísse dali, servindo só para que os colegas ficassem alerta e tomassem precauções. Mas a mensagem vazou e as capturas de ecrã com o conteúdo das mensagens e o utilizador de Li exposto tornaram-se virais. Dois dias depois, a 1 de janeiro, o "Diário do Povo" (jornal oficial do Partido Comunista) noticiou que oito pessoas tinham sido castigadas por "difundir rumores" que davam conta do regresso do SARS, tranquilizando as pessoas com a capacidade médica do país para lidar com um eventual surto.
Polícia castiga e Supremo admite razão do médico
Dois dias depois, o oftalmologista recebeu uma visita da Polícia e foi levado para a esquadra, onde foi repreendido e obrigado a assinar uma declaração na qual se comprometia a não criar rumores: "A sua ação vai além da lei, ao divulgar comentários falsos na Internet. A Polícia espera que colabore. É capaz de parar com essas ações ilegais? Esperamos que se acalme, reflita e avisamos severamente: se insistir e não mudar de ideias, se continuar com as suas ações ilegais, enfrentará a lei. Está percebido? ". Escreveu que sim e assinou o documento, a correr nas redes sociais chinesas até ser bloqueado pela autoridade que controla o ciberespaço chinês.
Ao fim de uma semana, Li começou a sentir os primeiros sintomas da doença: tinha sido infetado com o novo coronavírus por uma doente e saberia o diagnóstico dias depois. A 28 de janeiro, já depois do pico do surto e a partir da cama onde foi posto em isolamento, leu a crítica do Supremo Tribunal à Polícia de Wuhan, defendendo que os oito médicos não deviam ter sido punidos, dado que as informações veiculadas não tinham sido "totalmente fabricadas". "Teria sido bom que o público tivesse acreditado nos 'rumores' e começado a usar máscaras, adotado medidas de higiene e afastado do mercado de animais selvagens."
Li Wenliang morreu na quinta-feira à noite e tornou-se na imagem do desastre que foi a gestão da crise. Nas primeiras horas de quinta-feira, o tema foi massivamente discutido no WeChat (uma espécie de WhatsApp), e o Weibo (Twitter chinês) encheu-se de tributos, mensagens de indignação e clamores por direito à liberdade de informação e expressão, à boleia de "hashtags" como "#QueroLiberdadeDeExpressão" e "#EstáPercebido?", numa alusão à declaração da Polícia. Foi tudo bloqueado e apagado pela Polícia da Net, que há dias anunciou o reforço da vigilância nas redes sociais. Entretanto, a Comissão Nacional de Supervisão, organismo anticorrupção do governo chinês, anunciou que vai a Wuhan investigar "a fundo" as "questões relacionadas" com Li Wenliang.