A situação na Bolívia e no Chile está à espera da pacificação. A Argentina vira à Esquerda e o Uruguai pode guinar à Direita.
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Incerteza em La Paz. O Movimento para o Socialismo (MAS), no poder desde 2006, retomou na sexta-feira o comando das duas câmaras do Congresso, onde possui maiorias esmagadoras, mas o Governo está nas mãos da autoproclamada presidente da Bolívia. Terão acordado eleições urgentes e houve apelos do MAS à desmobilização dos seus militantes nas ruas, mas milhares de "comuneiros" marchavam para a Casa Queimada, exigindo a remoção de Jeanine Áñez.
A situação na Bolívia e a tentativa de pacificação no Chile são expressões de uma América Latina numa confusa mudança de ciclo. Depois da inauguração, no início do século, de uma onda de governos populares e progressistas (Hugo Chávez, na Venezuela; Lula da Silva, no Brasil; Nestor Kirchner, na Argentina; Evo Morales, na Bolívia), vieram os reveses, com o golpe militar nas Honduras (2009), a eleição do neoliberal jurado Maurício Macri (2015), a destituição de Dilma Rousseff (2016) e a "traição" de Lenin Moreno no Equador. Agora, a Argentina volta ao campo progressista, o Chile está em mudança e o Brasil tem Lula em liberdade e a combater o governo de um capitão nostálgico da ditadura militar.
Bolívia
Acordo para eleições urgentes
O saldo vai numa dezena de mortos e 380 feridos. Mas há queixas de acosso sexual e de humilhações: uma autarca indígena foi agredida por ultradireitistas, que lhe cortaram o cabelo à força. No domingo, o presidente boliviano, Evo Morales anunciou a realização de novas eleições, cedendo à exigência nas ruas. Em vão. Recrudesceu a violência atiçada pela extrema-direita liderada pelo empresário Luís Camacho: eleitos do MAS agredidos, casas assaltadas e incendiadas e confrontação nas ruas, sem que a Polícia e o Exército a parassem.
Com autarcas, governadores e os presidentes do Senado e da Câmara dos Deputados demitidos, o presidente e o vice-presidente renunciaram para evitar mais derramamento de sangue e exilaram-se no México. A chefia interina do Estado foi reclamada pela segunda-vice-presidente do Senado, Jeanine Áñez, extremista conhecida pelo desprezo por indígenas e mestiços.
Representando 88% da população, só adquiriram cidadania com Evo, ele próprio indígena. Presidente desde 2006, fundou o Estado Plurinacional da Bolívia; reduziu a pobreza de 60% para 35%; aumentou o PIB de nove mil milhões para 40 mil milhões de dólares, com crescimento anual de 4,9%; e assegurou o controlo de minérios estratégicos, como o lítio.
Ontem, um acordo entre todos os partidos devolveu ao MAS o controlo do Congresso, para pacificar o país e realizar eleições urgentes. Áñez age como se não fosse interina: saiu da aliança regional ALBA e expulsou diplomatas venezuelanos.
Chile
Piñera cede para nova Constituição
Após um mês de contestação na rua, extrema repressão policial e violência (pelo menos 22 mortos e mais de dois mil feridos), o presidente do Senado anunciou ontem um "Acordo de Paz e Nova Constituição". Em abril, os chilenos dirão em referendo se querem uma nova Constituição e quem deve redigi-la. A esquerda quer uma assembleia constituinte.
O objetivo é revogar a da ditadura de Augusto Pinochet (1973-90), exigência central na contestação ao presidente Sebástian Piñera, iniciada a 14 de outubro. A espoleta foi o aumento dos preços dos bilhetes do metro. Mas havia outros (eletricidade, pão...) e razões de fundo (agravamento de desigualdades, pensões sociais reduzidas...). Piñera cancelou os aumentos, mas a rua não cedeu. Remodelou o Governo, mas, na rua, centenas de milhares não transigiram.
Argentina
Regresso ao ciclo progressista
O chileno Piñera enriqueceu na ditadura de Pinochet, alavancado pela doutrina neoliberal que o Chile inaugurou. É o sonho da direita argentina, que acaba de ruir. Maurício Macri pretendia profundas reformas económicas, sociais e sindicais. Não conseguiu privatizar empresas estratégicas (impedido pela resistência popular) e falhou o investimento produtivo. O custo de vida aumentou e a dívida agravou-se. Foi o primeiro presidente a não ser reeleito, derrotado pela Frente de Todos (Alberto Fernández e Cristina Kirchner).
Uruguai
Direita ameaça a Frente Ampla
No dia 24, os uruguaios vão optar, em segunda volta, se dão a presidência a Daniel Martínez, da Frente Ampla (esquerda), que governa há 15 anos, ou a Luis Lacalle Pou (Partido Nacional). Na primeira, Martínez obteve 39,2% e o centro e a direita devem convergir. A FA perdeu a maioria parlamentar (42 em 90), com a irrupção do novo partido de extrema-direita, Conselho Aberto (onze eleitos), fundado pelo general Guido Manini Ríos, simpatizante da ditadura militar de 1973-84.
Venezuela
Apoio a Morales
As organizações que apoiam o presidente venezuelano, Nicolás Maduro, realizam hoje, em Caracas, uma manifestação para condenar os últimos acontecimentos na Bolívia e solidarizar-se com o ex-presidente boliviano Evo Morales.
Guaidó inspira-se
O autoproclamado presidente interino da Venezuela, Juan Guaidó, convocou para hoje novas manifestações para exigir a saída do presidente venezuelano, Nicolás Maduro. "Os objetivos estão a cumprir-se. Há que romper com a falsa normalidade. À rua sem retorno, é estar na rua até conseguir os objetivos", apelou.