Uma investigação jornalística internacional descobriu uma espia russa do Departamento Central de Inteligência que operou durante vários anos junto do destacamento da NATO, em Nápoles. Maria Adela passava por ser uma joalheira que privava na sociedade napolitana, enquanto estaria a trabalhar para a agência central dos serviços secretos russos (conhecido como GRU, na sigla anglo-saxónica). É suspeita do envenenamento de Sergey e Yulia Skripal, em Inglaterra.
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A história que Maria Adela Kuhfeldt Rivera contava sobre a infância não era a mais verosímil, mas tinha um elemento trágico que gerava simpatia e divergia desconfianças. A joalheira que se passeava na sociedade napolitana dizia que era filha do amor rebelde de uma mulher peruana e de um homem alemão, onde foi beber os apelidos; contou que a mãe, solteira, se deslocou a Moscovo para os Jogos Olímpicos de 1980 e que uma emergência familiar a chamou de volta às terras andinas. Na pressa de voltar deixou-a ao cuidado de um casal russo com quem travara amizade.
Quem viveu os anos de 1980 sabe que havia um grau de liberdade e independência entre pais e filhos superior ao habitual dos dias de hoje. Mas daí a ser plausível que, mesmo nesses tempos em que se saía da casa apenas com a preocupação de regressar para as refeições, acreditar que uma mãe peruana deixasse a filha ao cuidado de um casal russo que conhecera numa viagem a Moscovo parece demasiado libertário.
A desconfiança parece ter falado ao ouvido de uma das pessoas que se cruzaram na vida de Maria Adela, a falsa joalheira radicada em Itália que privava com as altas patentes da NATO, em Nápoles. A coronel Shelia Bryant, Inspectora Geral das Forças Navais dos EUA na Europa e África achava a história de vida de Adela demasiado rebuscada. Mas a espia russa juntou-lhe um toque dramático que gerava simpatia e calava perguntas: dizia que sofrera muito com a família russa e que era abusada pelo pai adotivo. Bryant, que deixou Nápoles em 2018, para concorrer ao congresso norte-americano, sentiu empatia pela dor da mulher, que lhe confidenciava problemas de relacionamento sociais por causa dos abusos de infância, e embalou as suspeitas antes de abalar para casa.
Secretária do Lion's Club e mulher da sociedade napolitana
Uma investigação conjunta do "Bellingcat", do jornal alemão "Der Spiegel", do "The Insider" e do italiano "La Repubblica" traçou o perfil desta espia, que além dos americanos interagiu socialmente com pessoal e oficiais belgas, italianos e alemães da NATO. E embora tenha tido acesso direto a muitos oficiais da Organização do Atlântico Norte, tendo socializado com muitos deles fora do trabalho, não é claro se teve acesso físico à base de Nápoles.
Mas o rasto que deixou nas redes sociais e nas revistas da sociedade permite verificar que foi presença em eventos organizados pela NATO e por militares dos EUA, incluindo os bailes anuais e várias ações de angariação de fundos. Na construção da personagem que se passeou em alguns dos circuitos restritos da sociedade de Nápoles, Maria Adela vivia numa zona exclusiva da cidade, o bairro de Posillipo, e foi aceite como secretária do Lions' Club local, que tinha sido criado por um oficial norte-americano da NATO.
Durante o tempo em que viveu em Itália, entre 2010 e 2018, Maria Adela casou com um homem que dizia ser italiano e tinha passaporte russo por ser filho de uma moscovita e um equatoriano. O casamento, realizado em julho de 2012, acabou em cerca de um ano, com a morte do marido numa deslocação a Moscovo. Segundo a autópsia, a que a investigação teve acesso, foi vítima de "uma pneumonia bilateral e sofria de Lúpus", uma doença autoimune que terá revelado aos amigos dois meses antes de falecer, apesar de nunca ter contado aos contactos mais íntimos que havia casado quase um ano antes.
Em Itália, fez amizades com várias pessoas influentes, incluindo Marcelle D"Argy Smith, antiga editora da edição britânica da revista Cosmopolitan, que conhecera em Malta, onde Maria vivia com um namorado, antes de se mudar para Ostia, nos arredores de Roma. Marcelle contou aos jornalistas que Rivera estudou joalharia numa escola romana e que esteve em Inglaterra numa viagem de grupo, em fevereiro de 2011. Meses depois, viajou para Paris para fazer um doutoramento e estabeleceu as bases para a criação da marca de joalharia que lhe abriria portas na sociedade napolitana. A Serein começou por ser apenas uma loja de venda de joias, desenhadas pela própria, segundo dizia o site da empresa, entretanto desativado, mas evoluiu para um ponto de encontro de parte da sociedade local, na forma de um clube exclusivo.
Segundo a investigação, o tempo passado em Paris fez parte da estratégia do GRU, de a colocar no terreno como uma mulher de negócios bem-sucedida, que lhe proporcionou cobertura e acesso a pessoal e oficias da NATO em Nápoles, apesar de algumas pessoas como a coronel Bryant, nunca terem percebido como fazia dinheiro para mudar tanto de casa, sempre nos circuitos luxuosos da cidade napolitana. Os dados obtidos pelo consórcio de investigação concluem que Maria Adela não estava na Rússia na altura da morte do marido, mas que aterrou em Moscovo um mês depois, em agosto de 2013.
Passaporte faz parte do lote dos usados pelos espiões do GRU
Os dados das viagens de Maria Adela surgem numa base de dados que contém gravações das chamadas do Major General Andrey Averyanov, o comandante da unidade clandestina 29155 do GRU, uma célula secreta russa especializada em extorsão, sabotagem e assassínios. Na análise aos dados, os jornalistas depararam-se com o passaporte de Maria Adela, cujo número, 643258050, era muito próximo do de "Sergey Fedotov", a identidade que esconde o espião russo Sergey Lyutenko, cujo passaporte tinha o número 643258060, e é suspeito de ter participado no envenenamento de Sergey Skripal, em Inglaterra, e a morte do negociante de armas búlgaro Emilian Gebrev.
Sabendo que os serviços secretos russos atribuem passaportes com números seguidos aos operacionais, os jornalistas perceberam que tinham encontrado uma espia russa escondida em Itália e foram atrás do fio da meada. Descobriram Maria Adela e uma tentativa dos advogados da viúva joalheira de Nápoles de obter cidadania peruana, em 2005, alegando ter nascido em Callao. O Peru pode ser um país pobre da América Latina, mas não é uma república das bananas e o funcionário encarregue do processo achou que não havia fundamentos suficientes para deferir o processo.
Os advogados enviaram mais dados, incluindo uma certidão de batismo emitida na Paróquia do Cristo Libertador de Callao, a atestar o nascimento a 1 de setembro de 1978 e o batismo duas semanas depois, a 14 de setembro. A mentira tem perna curta e nem foi preciso o padre José Enrique Herrera Quiroga ir aos arquivos para saber se por lá havia sido batizada uma criança chamada Maria Adela Kuhfeldt Rivera, em 1978, pois nem a vontade de Deus seria capaz de ter uma pia batismal numa igreja que ainda não existia, e que seria fundada em agosto de 1987, nove anos depois.
Maria Adela teve o primeiro passaporte russo em 2006, usando a mesma data de nascimento do pedido feito no Peru. Segundo a identidade criada, trabalhava como "especialista principal" na Universidade Estatal de Moscovo, mas o consórcio de investigação não encontrou alguém que a conhecesse ou pudesse comprovar os registos nas bases de dados que lhe atribuíam morada em Moscovo desde 2010. O passaporte atribuído a Maria Adela fazia parte de um lote de documentos emitidos pelo GRU que incluía pelo menos outros seis espiões.
Baseado na proximidade dos números dos passaportes e no conhecimento do métodos do GRU, o consórcio estima que o primeiro passaporte russo tenha sido emitido em novembro ou dezembro de 2006, pouco depois do Ministério da Justiça peruano ter denunciado a falsidade da identidade de Maria Adela. O processo seria exposto publicamente na Internet, mas não chegou a conhecimento notório, perdendo-se para lá dos Andes.
Durante o tempo em que foi uma alegre viúva joalheira, Maria Adela viajou também para o Bahrain, para uma feira de joalharia. Confessou à amiga Marcelle que não vendeu nada, mas que gostou muito da viagem e das pessoas daquele pequeno estado do Golfo Pérsico, onde está instalada o Comando Central das Forças Navais da Quinta Frota dos EUA, uma das mais fortes e importantes do Mundo, e a base Naval de Suporte. No total, alberga cerca de sete mil militares. Nas viagens que fez, Maria Adela andou também pelo sudoeste asiático e pela Europa, em países como a Alemanha ou a Suíça.
Maria Adela despareceu há cinco anos; nasceu Olga Kolobova
Em 2018 viajou para Moscovo, usando um terceiro passaporte, como os dois anteriores, com um número dos lotes destinados aos elementos do GRU. O rasto de Maria Adela desapareceu há quatro anos, mas o consórcio de investigação encontrou pontos de contacto entre a espia, cujo nome não consta de qualquer base de dados russa, e uma mulher identificada como Olga Kolobova, nascida em 1982. Segundo o consórcio de jornalistas, que investigou a história da espia viúva, a peugada digital de Olga aparece apenas a partir de novembro de 2018, altura em que Maria Adela regressou à capital russa.
As coincidências reforçam a ideia de que Kolobova sempre foi Rivera, pois Olga foi proprietária de dois apartamentos em Moscovo nos períodos em que Maria Adela viveu na capital russa, para onde se deslocou em 2013, a propósito de uma doença da mãe. O segundo apartamento, uma luxuosa habitação de 100 metros quadrados, avaliado em cerca de 800 mil euros, foi adquirido em 2020.
Com todas estas pistas em mãos, os jornalistas conseguiram ajuda de uma fonte na Direção Geral de Viação Local e receberam uma foto da carta de condução de Olga Kolobova. A imagem, aparentemente tirada em 2021, parece confirmar que Olga e Maria são a mesma pessoa.
Uma tese reforçada pelas redes sociais: a imagem de Olga Kolobova no WahtsApp é a mesma usada por Maria Adela no Facebook e no Instagram. Estas informações seriam suficientes para comprovar que são uma e a mesma pessoa, mas os jornalistas foram mais a fundo e um telefonema de Olga para o comandante do departamento 5 do GRU, no dia da Rússia, confirmou a ligação, sem grande margem para dúvidas, da alegre viúva joalheira que passeou charme em Nápoles à perigosa célula do GRU.