Nos últimos 15 anos, mais de 93 mil crianças do Mundo foram utilizadas como soldados. Uma estimativa que fica aquém da realidade, mas a violência dos relatos dos que conseguem escapar continuam a perturbar quem os ouve. A maior parte dos conflitos que envolvem menores acontecem no continente africano e no Médio Oriente e são alimentados por movimentos armados ilegais.
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Somália, República Democrática do Congo, Síria e Iémen são alguns dos países onde as crianças são forçadas a trocar os brinquedos pelas armas. O número de crianças recrutadas como soldados, guardas, espiões, cozinheiros ou escravos sexuais está associado aos conflitos locais que existem em várias nações. Só em 2020 mais de 8,5 mil crianças foram coagidas a serem crianças-soldado e quase 2,7 mil foram mortas, segundo dados da Organização das Nações Unidas (ONU).
Os grupos armados atacam vilas, centros de saúde e escolas para capturarem os menores e forçá-los a integrarem as organizações de guerrilha. Mas o recrutamento pode acontecer também através da "sedução". "É fácil seduzir uma criança com ideia de herói ou com a ideia de que vai vingar alguém da família que foi morto e levá-la a querer participar," admite Maria Assunção Pereira, professora da Universidade do Minho. Por serem territórios pobres e fustigados pelo conflito, muitas vezes, são os próprios pais a enviarem os filhos para a guerra "para que tenham comida e cuidados médicos básicos" ou então porque dizem precisar "de alguém que os defenda".
"Apesar de estarem protegidas juridicamente, a realidade supera a lei e temos crianças, desde os cinco anos, que são usadas para combate ou para servir grupos armados", disse a docente da Escola de Direito do Minho. De acordo com o Fundo da ONU para a Infância (UNICEF), o centro e oeste do continente africano lideram as taxas globais de crianças-soldado. Mais de 21 mil menores foram recrutados por forças governamentais ou grupos armados na região nos últimos cinco anos.
"A guerra roubou a nossa infância"
As crianças estão entre os grupos mais vulneráveis de qualquer sociedade e os ataques constantes nos países em conflito têm tido um impacto profundo na saúde mental e no bem-estar dos mais pequenos. "A guerra roubou a nossa infância. Crescemos com conflitos e com mortes" é uma das frases mais duras de Barzan, um jovem iraquiano, que protagoniza o novo documentário da Amnistia Internacional sobre os desafios enfrentados pelos yazidis que serviram o Estado Islâmico (EI). O ataque do El à comunidade de yazidis, em 2014, fez três mil vítimas mortais e retirou seis mil jovens das suas famílias. Mais três mil continuam desaparecidos.
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O documentário de 12 minutos, "Prisioneiros na linha da frente: ex-crianças-soldado yazidis que sobreviveram ao El", assenta na amizade entre Vian e Barzan, dois jovens que foram raptados enquanto crianças pelo EI, instruídos pelo grupo armado, e forçados a combater. Ambos escaparam e estão agora a viver no norte do Iraque.
Muitos destes jovens, que lidam diariamente com traumas profundos, continuam a ter graves problemas de saúde física e mental. "Até à data, muitos sobreviventes yazidis ainda não receberam apoio adequado à sua saúde física e mental, ou à sua educação. De facto, muitos não receberam qualquer tipo de apoio desde que regressaram às suas comunidades", afirma Nicolette Waldman, investigadora sobre crianças e conflitos armados na equipa de Resposta a Crises da Amnistia Internacional.
Mas esta não é uma realidade exclusiva da comunidade yazidi. "O regresso e a integração não é fácil porque muitas vezes as pessoas olham para estas crianças como criminosas e ex-soldados, quando não o são", revela Pedro Neto, diretor-executivo da Amnistia Internacional em Portugal. Muitos destas vítimas enfrentam marcas psicológicas e incapacidades físicas para o resto da vida.
No relatório de 2021, intitulado "Não tenho mais nada a não ser eu mesmo: O impacto devastador nas crianças em situação de conflito na região Tillabéri do Níger", a Amnistia Internacional documentou sintomas de trauma e angústia entre as crianças, incluindo pesadelos, padrões de sono conturbados, medo, ansiedade e perda de apetite.
"Usadas para atravessar campos minados"
Os novos recrutas recebem treino com armas, por períodos que podem variar entre uma semana a três meses. Na Jama"at Nusrat al-Islam wal-Muslimin (JNIM), filiada na al-Qaeda, as crianças podem ser utilizadas como espiões, batedores e vigias, entre outras funções definidas como "participação em hostilidades" ao abrigo do Direito Internacional. Em muitos casos, as "crianças são usadas para atravessar campos minados e assim proteger os adultos, que conseguem ver onde estão as minas", revela Maria Assunção Pereira.
O JNIM atua sobretudo nas fronteiras do Níger com o Mali e o Burkina Faso, região onde o número de crianças mortas e recrutadas por grupos armados aumentou significativamente em 2021, de acordo com um relatório da Amnistia Internacional.
Apesar de os rapazes serem o alvo preferencial, as raparigas não são poupadas e integram as milícias para auxiliarem nas tarefas domésticas ou então como escravas sexuais. Cerca de duas mil crianças foram vítimas de violência sexual nos países do centro e oeste de África.
Estima-se que entre 2005 e 2020 mais de 93 mil crianças do Mundo foram utilizadas como soldados, número que pode estar muito aquém da realidade, segundo Pedro Neto. O recrutamento "não está relacionado com as regiões, ou com os continentes, tem sobretudo a ver com a situação militar do próprio país. Até porque maior parte das crianças-soldado são recrutadas por organizações de guerrilha, movimentos armados", prossegue.
Interesses económicos alimentam os conflitos
"Infelizmente vender armas dá muito mais dinheiro que prevenir conflitos", lamenta a professora Maria Assunção Pereira. "As empresas de armamento tem uma boa capacidade de financiamento e estão interessadas em que haja conflito para vender mais armas", continua.
Na opinião do diretor-executivo da Amnistia em Portugal, a comunidade internacional é movida por interesses económicos e não por interesses humanitários, o que dificulta o combate a esta prática. Por isso, sugere que se faça cumprir a lei e a "Convenção das Nações Unidas sobre os direitos da criança". É importante "responsabilizar quem comete crimes contra a Humanidade e não respeita estas convenções (...) não pode haver impunidade, sejam os responsáveis guerrilheiros ou de exércitos estatais", diz Pedro Neto.
Forçar uma criança a pertencer a movimentos armados constituí um crime de guerra e de acordo com os estatutos do Tribunal Penal Internacional as penas podem ir até 30 anos ou, em casos considerados graves, podem mesmo chegar a prisão perpétua.
"Havendo vigilância, cumprimento e depois consequências para quem comete estes crimes podemos fazer com que este número diminua", confessa ainda Pedro. Nos últimos 25 anos, mais 170 mil rapazes e raparigas foram libertados dos grupos armados, segundos dados da ONU.

