Volvidos quatro meses de conflito na Ucrânia, e depois de um momento de impasse, a Rússia está a conseguir alavancar avanços significativos no Donbass. Para Sandra Fernandes, especialista em Relações Internacionais da Universidade do Minho, o domínio russo no leste da Ucrânia não é reversível e deverá resultar numa perda territorial para o país liderado por Volodymyr Zelensky.
Corpo do artigo
Em quatro meses de guerra na Ucrânia, o que mudou no plano operacional?
A principal alteração no plano militar surgiu da própria Rússia, na altura em que fez uma grande reorientação das tropas devido à enorme surpresa que teve com a resistência ucraniana nos arredores de Kiev. Atualmente, a Rússia está a dar tudo por tudo para conquistar o Donbass e está a haver uma grande concentração nas cidades de Lysychansk e Severodonetsk. Esta é a grande alteração do ponto de vista operacional e militar, já que, ao fim de quatro meses, Moscovo está a perder do ponto de vista global, mas está a obter ganhos significativos se olharmos para uma escala mais reduzida.
A alteração da estratégia e os pequenos avanços territoriais estão a alicerçar uma vitória no leste?
Sim, penso que a conquista do Donbass está para breve. Ao contrário do que aconteceu noutras regiões em que tentou controlar sem sucesso, aqui a Rússia foi conquistando posições de forma gradual e consistente, apesar de encontrar obstáculos. Outro sinal é o facto das próprias autoridades ucranianas admitirem esta derrota, alegando que esta batalha no Donbass está a ser muito difícil devido à concentração do esforço da máquina de guerra russa. Por outro lado, a necessidade de Zelensky de mostrar ao Mundo o que se está a passar no leste de país também mostra o quão crítico está a ser o conflito no leste. Este é um momento-chave para os ucranianos, porque estão a tentar construir uma frente que lhes permita chegar à mesa de negociações.
Uma conquista do Donbass por parte dos invasores poderá motivar avanços noutras regiões da Ucrânia?
Não necessariamente, mas vai alimentar a bolha informativa de Moscovo sobre o que se está a passar no terreno. Na narrativa de comunicação do Kremlin, os ucranianos são tratados quase como não se não fossem seres humanos, portanto tem havido uma maior radicalização da propaganda, o que pode piorar com conquistas territoriais. Relativamente aos avanços, sabemos que os ucranianos vão continuar a ser armados pelos americanos, portanto vão continuar a ter capacidade para fazer uma contraofensiva. Do lado russo, há uma maior dificuldade em avaliar a capacidade militar, já que, do ponto de vista convencional, as forças armadas russas estão num estado lastimável face àquilo que se poderia esperar de uma grande potência, mas têm dois recursos fundamentais: soldados e artilharia. Porém, o material bélico russo é bastante obsoleto e tem pouca precisão, ao contrário daquele que tem sido enviado pelo Ocidente para a Ucrânia, que passa por tecnologia de ponta. Ainda assim, é preciso ter em conta que a Rússia é uma potência nuclear, e a crise que se iniciou em Kaliningrado no último fim de semana, depois de a Lituânia aplicar um corte parcial à circulação de mercadorias russas, mostra bem a sensibilidade da escalada desta guerra.
O bloqueio a Kaliningrado pode ser visto pelos russos como um ataque?
Este bloqueio faz subir o potencial da escalada mundial, mas um ataque real não me parece plausível, até porque Kaliningrado é um território russo. Mas a verdade é que Moscovo tem vindo a aumentar o poderio bélico nesta região. Em 2008, colocou uma moratória no Tratado sobre Forças Armadas Convencionais na Europa (FCE), que estabilizou as relações de segurança quando a Guerra Fria acabou. Assim, suspendeu a sua obrigação de cumprir partes do tratado, que incluía a desmobilização de forças das fronteiras com países da NATO. Com a moratória, a Rússia pode reconduzir tropas nas fronteiras com a Estónia, em Kaliningrado e nas fronteiras com a Ucrânia. Para Moscovo, Kaliningrado é uma ponta de lança no coração da NATO.
Este aumento da escalada levará à eventual construção de dois blocos políticos como os que existiram durante a Guerra Fria?
Atualmente, é impossível haver dois blocos. O Mundo de hoje já não é Mundo da Guerra Fria. Nós assistimos àquilo que foi uma evolução das relações internacionais. Se houvesse dois blocos significaria que havia uma relação fortíssima entre a Rússia, a China e a Índia, o que não é real. Embora os três países contestam a liderança norte-americana do Mundo, não é possível configurar blocos porque vivemos num Mundo globalizado. Enquanto no período da Guerra Fria os estados dominavam um monopólio, hoje em dia isso é impossível. Ainda assim, a guerra coloca a questão de rever a geopolítica europeia e aí vamos ter uma nova linha divisória da qual a Rússia não faz parte, pelo menos enquanto Putin estiver no poder.
Voltando à questão das negociações, considera que a fadiga da guerra pode levar a cedências territoriais por parte da Ucrânia?
Os ucranianos estão realmente a mostrar alguns sinais de fadiga ao fim de quatro meses de guerra, sobretudo com a reorganização das tropas russas no Donbass. Contudo, não se observa um "baixar dos braços". Eu julgo que o que os ucranianos desejam neste momento é que não se volte, para já, para a mesa de negociações. Eles conhecem bem a Rússia e sabem que, neste momento, partir para as negociações é o mesmo que desistir de todos os objetivos que têm em mente e portanto não é altura certa. O momento ideal será quando houver uma estabilização da capacidade ofensiva da Rússia, esperando-se que se fique pelo Donbass.
Essa estabilização da Rússia significa uma perda total do Donbass por parte da Ucrânia?
A Ucrânia já perdeu definitivamente parte do seu território, pelo menos naquelas zonas que têm continuidade territorial com a Rússia. A Ucrânia já não tinha controlo a 100% de algumas zonas do seu território antes da guerra, mas nos últimos meses a situação piorou.
Então uma conquista do Kremlin a leste e o regresso ao diálogo será o princípio do fim do conflito...
Possivelmente. Embora se saiba que a Rússia é especialista em manter situações instáveis e pouco claras. Não me parece que possamos esperar rapidamente clareza nos passos seguintes ou a criação de um novo mapa. Penso que vamos encontrar uma situação geopolítica desequilibrada, tal como aconteceu depois da anexação da Crimeia.