Na batalha mais sangrenta desde que se iniciou a invasão russa na Ucrânia vive-se um importante ponto de viragem: os russos alegam obter o controlo total de Bakhmut, enquanto Kiev garante que as tropas ainda resistem. Tendo em conta que a cidade está completamente destruída e não existe qualquer edifício invicto, o que faz com que ambos os lados não desistam a nenhum custo?
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Localizada no território de Donetsk, no Donbass, a pequena cidade industrial de Bakhmut tem sido, ao longo dos últimos oito meses, o reduto mais disputado do Leste da Ucrânia.
Apesar de, no sábado, o grupo Wagner ter reivindicado a captura total da localidade, reiterando a saída das forças até ao fim deste mês de modo a transferir o controlo da cidade para o Exército russo, Volodymyr Zelensky, presidente ucraniano, assegurou que as tropas de Kiev ainda mantêm posições num dos flancos.
Ainda que a cidade - que antes da guerra albergava mais de 70 mil habitantes - esteja completamente destruída e as poucas pessoas que ainda lá permanecem estejam a morar em abrigos subterrâneos que estão constantemente sob bombardeamentos, há várias razões que motivam a resiliência de ambos lados envolvidos na guerra, até porque, a confirmar-se, uma conquista russa terá grande importância para as forças de Vladimir Putin.
Reforço da moral das tropas
Embora muitos analistas militares defendam que Bakhmut tenha pouco valor estratégico, o Kremlin necessita, neste momento, de uma vitória no terreno, mesmo que esta seja considerada simbólica. Já passou quase um ano desde que as tropas russas alcançaram cidades como Severodonetsk e Lysychansk , sendo que, desde então, os ganhos territoriais obtidos foram incrementais e lentos.
Caso se confirme que Bakhmut caiu nas mãos do Exército russo, esta será a primeira grande conquista desde julho do ano passado, o que representaria uma vitória moral no campo de batalha após uma série de humilhantes derrotas, das quais resultaram múltiplas baixas para Moscovo, quer a nível humano como militar.
Estima-se que o Exército russo, indicam os serviços de inteligência do Ocidente, já tenham perdido entre 20 mil e 30 mil soldados - fora os mercenários do grupo Wagner que terão sido mortos no decorrer da longa batalha -, o que faz com que a Rússia esteja cada vez mais dependente de uma glória para provar internamente que os esforços da máquina de guerra não são em vão.
"Estão a lutar numa missão política e não apenas militar. Os russos vão continuar a sacrificar milhares de vidas para alcançar os objetivos políticos", explicou o presidente do Centro Ucraniano de Segurança e Cooperação, Serhii Kuzan, em declarações à BBC.
Ainda assim, as motivações militares não podem ser descuradas. O controlo total da cidade de Bakhmut também é visto pelas altas patentes russas como um "trampolim" que poderá dar acesso a outros relevantes ganhos territoriais.
Como observou o Ministério da Defesa do Reino Unido em dezembro do ano passado, a captura da cidade "permitiria à Rússia ameaçar as zonas de Kramatorsk e Sloviansk", duas cidades que Moscovo precisa de controlar para completar o processo que classifica como "libertação da República Popular de Donetsk".
Os temores de Zelensky
A queda de Bakhmut nas mãos dos russos implica, essencialmente, uma perda simbólica para a país invadido. Os ucranianos não poderão mais gritar "Bakhmut segura!", mas a tomada da cidade pelo inimigo tem outros contornos.
Para a Ucrânia, a resistência da cidade ajudou a sustentar o apoio dos países ocidentais, provando que as remessas de armamento que foram chegando até à frente de combate estavam a fazer a diferença.
Em dezembro do ano passado, altura em que viajou até aos EUA, Zelensky entregou ao Congresso norte-americano uma bandeira ucraniana assinada pelos soldados que estavam a defender a cidade, denominando o reduto como "a fortaleza da nossa moral". O líder de Kiev lembrou ainda: "A luta por Bakhmut vai mudar a trajetória da nossa guerra pela independência e pela liberdade", assinalou, num discurso em Washington.
Em março, numa entrevista à Associated Press, o presidente ucraniano continuou a destacar a importância da cidade e admitiu temer que uma vitória russa em Bakhmut pudesse provocar apelos da comunidade internacional e do próprio país para um diálogo de paz que respondesse às expectativas territoriais da Rússia, justificando, assim, a permanência dos combatentes ucranianos na cidade apesar dos riscos.
No entanto, três meses depois, as forças ucranianas podem não ter sido capazes de resistir aos constantes ataques russos. Numa altura em que o Exército de Zelensky está a preparar uma contraofensiva, a alegada tomada de Bakhmut por parte de Moscovo pode levantar preocupações entre os aliados da Ucrânia.
A perda da cidade pode infligir um golpe na moral dos soldados ucranianos depois de tantos meses de luta, sendo que não se sabe ao certo quantos militares terão perdido a vida e qual é o estado atual das forças.
A influência de Prigozhin
Além do Exército russo, os combatentes ucranianos enfrentaram ainda os mercenários do grupo paramilitar Wagner, liderado por Yevgeny Prigozhin. A organização de origem russa teve um papel preponderante na batalha de Bakhmut, trazendo à tona a forte dependência que o Kremlin tem da rede privada.
Prigozhin apostou tudo na captura de Bakhmut com o objetivo de mostrar que os combatentes do grupo são mais capazes do que as forças de Moscovo. O chefe do Wagner viu-se obrigado a recrutar milhares de prisioneiros nas cadeias russas, depois de o Exército privado que lidera ter começado a sofrer grandes perdas no terreno, o que o levou a tecer duras críticas à Defesa russa, alegando que as autoridades não estavam a assistir os paramilitares cada vez mais necessitados de armamento.
Nos vídeos quase diários que foi publicando no Telegram, Prigozhin nunca se inibiu de criticar o Kremlin por não estar a ceder munições suficientes em Bakhmut, considerando, em diversos momentos, que os Wagner tinham sido "abandonados" no teatro de operações.
As acusações feitas às autoridades russas mostram a influência que Prigozhin tem em Moscovo, no entanto, uma derrota em Bakhmut, onde a organização paramilitar apostou as fichas todas nos últimos meses, poderia ter como consequência uma diminuição do seu estatuto junto do Kremlin.
O ex-presidiário de 61 anos, que também é alvo das sanções do Ocidente, tem procurado transformar o sucesso da organização no campo de batalha num aumento da sua importância política em Moscovo, o que pode confirmar a teoria de alguns especialistas militares que indicam que o Kremlin poderá ter agido de modo a conter a influência excessiva de Prigozhin, alegando que a falta de armas poderá não se ter tratado apenas de um problema logístico.
Independentemente da cidade já estar ou não nas mãos dos russos, para as autoridades ocidentais é claro que a batalha não teria durado tanto tempo sem a intervenção do grupo Wagner. Fontes da NATO estimam que, nos últimos meses, morreram cinco russos para cada ucraniano na região. O secretário de Segurança Nacional da Ucrânia, Oleksiy Danilov, vai mais longe ao alegar que a proporção é ainda maior: de sete para um.
Embora a tomada de Bakhmut tenha sido reivindicada no sábado pelo empresário russo, a situação militar na cidade não foi ainda verificada por entidades independentes.
Nos últimos meses, tanto a Ucrânia como a Rússia admitiram que a batalha de Bakhmut foi importante para destruir e distrair as forças inimigas antes de uma esperada grande contraofensiva ucraniana.