Revolta dos conservadores e sucessão de demissões fragiliza o Governo conservador. Primeiro-ministro também aconselhado a renunciar. Crise pode sobrar para a rainha e acabar em eleições gerais antecipadas.
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Cinco ministros, seis secretários de Estado e vários deputados do Partido Conservador demitiram-se em menos de 24 horas. É o saldo de uma crise política de efeitos devastadores para o Reino Unido e para o Governo de Boris Johnson, cada vez mais pressionado pela sucessão de escândalos, de causas remotas e de outra bem mais próxima, a dos desvios sociais e dos comportamentos sexuais inadequados de um deputado próximo do primeiro-ministro. Boris vê-se encurralado e até já há quem lhe indique, como o "The Guardian", as saídas possíveis, numa óbvia escala de gradação fatal: a submissão a mais um voto de confiança, uma vasta remodelação no Executivo ou uma saída cerimoniosa... Ou seja, "game over" para Boris.
Após a saída de dois pesos-pesados, Sajid Javid e Rishi Sunak, que tinham a cargo as pastas da Saúde e da Finanças, respetivamente, e que se demitiram na terça-feira, outras duas ministras - Julia Lopez (Media Estatais) e Kemi Badenoch (para as Igualdades) - e três sub-secretários de Estados - Alex Burghart (Aprendizagens e Habilidades), Lee Rowley (Comércio, Energia e Estratégia Industrial) e Neil O'Brien (Habitação e Comunidades) - resignaram em conjunto, em carta enviada a Boris Johnson, ao início da tarde desta quarta-feira. Pela manhã também já se sabia da renúncia do secretário de Estado das Crianças e da Família, Will Quince. E, antecipando-se ao crítico, o chefe de Governo demitiu o ministro da Habitação e Comunidades, Michael Gove, manifestamente descontente com a continuidade de Boris, a quem pediu que resignasse. Ao início da noite, a BBC contava 38 baixas entre os 21 gabinetes do Governo e bancada conservadora.
Num reflexo imediato, Boris Johnson deu um ar determinação pela sobrevivência e anunciou rapidamente uma remodelação - o ministro da Educação, Nadhim Zahawi, para a pasta das Finanças, e Steve Barclay, chefe de gabinete, para a Saúde -, mas sucessão de demissões apresentadas já esta quarta-feira colocou o primeiro-ministro à beira de uma crise de extensões imprevisíveis.
"O povo não quer eleições"
Perante a iminente queda do Governo, a crise pode sobrar para a rainha, a quem Borris Johnson sempre pode solicitar eleições antecipadas. Um próximo do primeiro-ministro, Angus MacNeil, diretor do International Trade Comité, uma das comissões instaladas na Câmara dos Lordes, garante, contudo, que Boris acredita "o povo não quer eleições neste momento".
E tudo isto por causa dos apalpões de um deputado que não soube controlar os impulsos sexuais...
"O "beliscador" que atormenta Boris"
Desde já, duas traduções muito livres que podem resumir tão literalmente os escândalos de cariz sexual que abalam o n.º 10 de Downing Street e o Governo de Boris Johnson: Pincher significa beliscador e é o apelido do deputado que bebeu uns copos a mais e que andou aos apalpões a homens num bar de Londres, na semana passada; e "Whips" quer dizer chicotes, o que, interpretado à letra, designa a função do responsável pela disciplina parlamentar dos deputados conservadores, além de remeter para uma certa bondage da corte e para o cenário de deboche político que faz as delícias dos tabloides da Velha Albion.
O terramoto político que sacode Londres tem um nome: Chris Pincher. Seria um discreto jurista de 52 anos, oriundo da província, das bases conservadoras das West Midlands, se não fosse o causador da demissão em série de ministros, em dissidência com a suposta ligeireza com que o primeiro-ministro britânico lidou com os sucessivos escândalos sexuais que envolveram o deputado. E se, depois do mais recente episódio de Pincher, registado num bar de Londres, na noite da última quarta-feira, reagiu como se nada fosse ou de nada soubesse, Boris Johnson rapidamente foi desmentido.
"Beliscador de nome, Beliscador por natureza"
Um ex-chefe de gabinete do primeiro-ministro diz que Boris estava bem ao corrente do comportamento devasso do deputado e que isso não impediu que o nomeasse ministro-adjunto dos Negócios Estrangeiros, em 2019. "Por que é que lhe ligou várias vezes, a rir-se e a dizer-lhe "Pincher by name, Pincher by nature" [Beliscador de nome, Beliscador por natureza"] muito antes de o nomear?", questionou Dominic Cummings, na última quinta-feira, horas depois de ter rebentado o escândalo.
Testemunhas citadas pela imprensa britânica contam que Pincher saiu do bar tão embriagado que houve necessidade de o ajudar a entrar num táxi. O próprio deputado assumiu a culpa e não demorou a pedir demissão do cargo de vice-presidente da bancada do Partido Conservador na Câmara dos Lordes: "Na noite passada, bebi de forma excessiva, envergonhei-me a mim e a outras pessoas e isso é a última coisa que quero fazer. Peço desculpa, a si e a todos os implicados", confessou, em carta endereçada a Boris Johnson.
"Bons e leais serviços"
Pincher também prometeu que ia procurar ajuda médica, mas o ato de contrição já não foi a tempo de evitar a cadeia de demissões que promete originar uma crise política de efeitos incalculáveis. O incidente da última semana não foi o primeiro e o deputado tem um vasto rol de de denúncias de assédio, acumuladas ao longo das duas últimas décadas e reveladas desde 2017. Um desses episódios foi contado por um antigo remador olímpico: Alex Story, também militante do Partido Conservador, contou que em 2001, quando tinha 26 anos, foi a casa do deputado e que este lhe desapertou a camisa e lhe disse que "ia longe no Partido Conservador".
Da queixa do atleta resultou uma investigação interna. A Sky News relata que Chris Pincher foi absolvido e reintegrado no Governo pela ex-primeira-ministra Theresa May. Sobram muitas outras histórias mais ou menos públicas de comportamentos desadequados com outros jovens militantes do Partido Conservador, sempre com alegadas promessas de progressão, mas nunca com consequências para a carreira do deputado.
Pelo contrário, neste tempo todo, Chris Pincher mostrou "bons e leais serviços" a Boris Johnsson, sobretudo na "arte de bajular", como lhe chama o New York Times, e de seduzir outros juristas conservadores para a "Operation Save Big Dog" [literalmente, "Operação de Salvamento do Cão Grande"], o próprio primeiro-ministro, quando teve de submeter-se e escapar por um triz ao voto de confiança do partido após o escândalo das festas em Downing Street durante a época de todas as restrições sanitárias impostas pela covid-19.