Só no município de São Paulo, 84 crianças deram à luz em três meses. As contas que sobressaem do caso da menina de dez anos que abortou.
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Mesmo que fossem os números de um país, seriam chocantes. Mas não. São de um município só. São Paulo. E de um trimestre apenas. Vieram à tona à conta da história de uma menina de dez anos do estado de Espírito Santo, que teve que viajar 1650 quilómetros até Recife para abortar da gravidez infligida pelo tio que a violava havia anos e que viu os seus dados espalhados na Internet por movimentos antiaborto e de extrema-direita liderados por uma ex-feminista que se descobriu apaixonada pela religião e pelo presidente do Brasil, Jair Bolsonaro. Como ela - ou quase, já lá vamos -, o município de São Paulo contou 84 em três meses.
Oitenta e quatro meninas dos dez aos 14 anos que só não são como ela porque deram à luz, apesar de a interrupção da gravidez ser legal em caso de violação e de risco para a mãe ou o feto - três condições inerentes à gravidez adolescente. As contas são dos últimos três meses e foram feitas pelo jornal "Folha de S. Paulo", citando a Secretaria Municipal da Saúde. Que relata histórias de uma normalização que permite perceber por que há quem se desloque para a porta de um hospital para chamar "assassina" a uma criança que tem a vida em risco (apresentava dores abdominais e diabetes potencialmente fatais).
Histórias chocantes
O tio da menina - que viu o hospital local recusar-lhe o procedimento - foi preso, mas é caso raro. E seguem as histórias. Uma aluna violada engravidada aos dez anos pelo cunhado, outra pelo padrasto, ambas na mesma escola, outra ainda, grávida aos 11 anos sobre a qual havia um registo de ocorrência nos serviços de saúde: a mãe levara-a à Unidade Básica de Saúde, onde lhe foi perguntado se podia ter havido violação - a mãe negou.
O caso seguiu os trâmites legais e a criança acabou a contar à Polícia que o namorado da irmã a levou a uma festa na casa dele, amarrou-a e violou-a enquanto a irmã deixava o lar livre para que o rapaz perpetrasse o crime, antes de defendê-lo perante os agentes e atirar as culpas ao padrasto. Conta o jornal que a pandemia travou o processo e a denúncia não avançou.
"A família organizou "chá de bebé"", contou uma especialista do Núcleo de Apoio e Acompanhamento para a Aprendizagem da Secretaria Municipal de Educação, encarregada de acompanhar o caso. "A criança está numa casa onde normalizaram o facto de ela ter sido violada", lamenta Márcia Bonifácio à "Folha".
Drama estatístico
As estatísticas nacionais do Brasil são trágicas e os especialistas atribuem-nas às falhas no sistema de reporte e proteção. Por hora são violadas quatro meninas até aos 13 anos, por ano, somam-se 26 mil adolescentes grávidas, mais 30% do que a média mundial, por dia, abortam seis meninas dos dez aos 14 anos, o país é dos piores do mundo no que toca ao abuso sexual de menores e inclui no atual Governo ministros que repudiam a educação sexual nas escolas - como Damares Alves, ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Uma das histórias contadas pela "Folha" é a de uma menina que percebeu que estava a ser violada quando na escola aprendeu que aquilo que faziam com ela era sexo.
O caso da criança de Espírito Santo gerou um debate em que se ouviram, entre outras coisas, um padre a alegar que ela "tava gostando" e ameaças. A menina teve que ser integrada num programa de proteção de testemunhas. Porque a militante Sara Winter espalhou o nome e a morada da menina nas redes e convocou protestos para o Recife. Um radical pegou nisso e foi ter com a avó, tentar convencê-la a deixar a neta dar à luz. Agora, a menina mudou de nome. De casa. De estado.