Evgueni Mouravitch, russso, e Volodymyr Yermolenko, ucraniano. Um ano após o início da invasão, analisam-se causas profundas, cenários para um desenlace dos combates e as eventuais cedências para a paz. Por fim, olha-se para um futuro incerto no plano político interno e na geopolítica mundial A adesão dos ucranianos à NATO ou até mesmo só à UE é viável?
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Um ano decorrido sobre o início da guerra na Ucrânia, convidámos um representante de cada lado das trincheiras para analisar as motivações de quem trava ainda batalhas, tentando igualmente antever o desenlace dos combates e o futuro cenário político de cada país. Evgueni Mouravitch, correspondente da RTP em Moscovo há mais de três décadas, retrata o sentimento de ódio dos russos relativamente a um "Ocidente coletivo". Volodymyr Yermolenko, filósofo e jornalista ucraniano, considera que Putin é um "homem do KGB" que culpa os ocidentais pelo colapso da URSS.
Os russos odeiam mesmo os ucranianos ou esse sentimento é mais dirigido para a NATO e União Europeia (UE)? "A máquina de propaganda funciona 24 horas nos sete dias da semana. Muitos russos acreditam, até mesmo nas grandes cidades, que é preciso acabar com os nazis de Kiev e que existe uma campanha do Ocidente contra a Rússia. Mais do que os ucranianos, a NATO e a UE são alvos de ódio. Os russos estão contra o 'Ocidente coletivo', uma massa isenta de identidade. O inimigo não é nada de concreto, são as forças do mal", afirma Mouravitch, em conversa com o JN durante a sua viagem rumo a Moscovo, por ocasião do primeiro aniversário do conflito sem solo ucraniano. "A guerra foi desencadeada com o objetivo de fazer uma reformatação geopolítica contra o 'Ocidente coletivo'", acrescenta.
Yermolenko fala com o JN a partir de Kiev. Como vive o seu dia a dia? "Lutando, cada um no seu lugar. Criar filhos, ir para a linha de frente, lecionar na universidade, escrever, fazer música, ler livros, fazer podcasts, escrever poesia, ir para a linha de frente. Não paro", desabafa.
Os russos estão contra o Ocidente coletivo (...). Estão contra as forças do mal
E como olham os ucranianos para Putin? "Vejo-o como a principal figura do regime mais repressivo do Mundo: o sistema soviético, baseado na checa (comité de emergência) e no KGB. Ao contrário de outros totalitaristas, como Hitler, Mussolini, Franco ou Salazar, estes herdeiros do regime soviético não foram derrotados, mantiveram o seu poder. Com o colapso da URSS, o KGB passou a dominar e o sentimento de impunidade instalou-se. O que era classificado de crime passou a ser chamado de justiça e vice-versa. Ele invadiu a Geórgia em 2008, desempenhou um papel na guerra da Síria ao lado de Assad, anexou a Crimeia e desencadeou a guerra no Leste da Ucrânia e, por fim, ordenou a invasão do nosso país", lamenta Yermolenko, que para além de filósofo e professor universitário em Kiev também dirige o "UkraineWorld.org", um projeto multimédia em inglês sobre a Ucrânia.
A paz pode ser alcançada com a cedência de territórios mais a Leste, na região do Donbass e na Crimeia? Quando falamos de russófonos ou russofonia nos territórios ucranianos, Mouravitch e Yermolenko divergem.
A razão da divergência é simples. "Há aqueles que falam russo, os que são etnicamente russos e os pró-russos. Se estamos a falar do Leste e do Sul do país, o russo só é predominante nas grandes cidades. E ser capaz de falar russo não torna a pessoa pró-russa", sublinha o filósofo ucraniano. "Quando Ursula von der Leyen, presidente da Comissão Europeia, abraça Zelensky e diz que quer a Ucrânia na UE, pergunto-me se ela dirá o mesmo após uma visita à Crimeia, região em que a maioria são russófonos e querem a união com a Rússia. Uma minoria é relutante. A questão central é que a Ucrânia está longe de ser um país homogéneo. O Leste do país não tem nada a ver com o Ocidente. Nem mesmo em Kiev existe essa homogeneidade. Kharkiv, por exemplo, é uma cidade russófona", diz Mouravitch.
O problema da sucessão em Kiev e Moscovo
Putin e Zelensky têm sucessores na calha? "Putin não tem adversários, uma vez que os esterilizou. Medvedev (presidente da Rússia de 2008 até 2012), por exemplo, recuperou a sua imagem mais brutal, para apagar a ideia, criada entre 2008 e 2011, de que é um liberal. O Kremlin apoderou-se do discurso de figuras como Vladimir Zhirinovsky, já falecido. Dá jeito a Putin que exista alguém mais à sua Direita. E esse papel é assumido por Medvedev, Strelkov e Kadirov. Quanto à Ucrânia, Zelensky tem capitalizado os seus dotes de ator. Mas aparecimentos frequentes de um líder fazem depreciar suas palavras. Repare-se no caso de Aleksey Arestovich, ex-conselheiro do Governo ucraniano. Ele é muito bem preparado e não descarta vir a ser candidato a presidente. Zelensky ainda tem algum capital de confiança", afirma Mouravitch.
Do lado ucraniano, a análise do panorama político é diferente. Arestovich? "Talvez venha a ter protagonismo político, embora caso de Zelensky mostra que tudo é possível na Ucrânia. Há quem diga que Zelensky não quer um segundo mandato. Sob a lei marcial, a nossa vida política não é normal. Em tempos de paz, as pessoas não vão tolerar um regime monolítico. Devemos evitar divisões agora. Quanto à Rússia, espero que a liderança mude. A Rússia devia olhar para dentro de si própria e não tentar ocupar outros países", sublinha Yermolenko.
Há quem diga que Zelensky não está interessado num segundo mandato
A Ucrânia pode ter esperança de entrar na UE?
A Ucrânia pode realisticamente esperar uma adesão rápida à UE. "A Turquia está a tentar entrar na UE há 30 anos. A eventual adesão da Ucrânia à NATO e à UE equivale à importação em pacote da guerra para território europeu, alerta Mouravitch.
A eventual entrada da Ucrânia na Europa dos 27 depende, fundamentalmente de sete critérios: reforma do Tribunal Constitucional; reforma do Alto Conselho de Justiça e da Comissão de Alta Qualificação de Juízes; programa anticorrupção; combate à lavagem de dinheiro; reforma anti-oligarcas; legislação em matéria de comunicação social e, por fim, legislação sobre minorias nacionais.
Em janeiro de 2023, devido à ausência do parecer da Comissão de Veneza, que a Ucrânia espera desde 2021, a reforma anti-oligarca permanecia ainda inalterada. Desde novembro de 2022, não houve avanços no combate à lavagem de dinheiro. Dos sete critérios, a par da reforma do Tribunal Constitucional, este é o que obtém a pontuação mais baixa.
"A questão da corrupção é sobrestimada. Veja-se quantos oligarcas russos vivem no Ocidente. O nosso caso tem muito menos escala. O Estado é muito mais transparente do que era. O acesso à UE tem a ver com as reformas. A entrada de Portugal demorou pouco mais de dez anos e nós já estamos no nono. Há um acordo especial com a UE e acho que há uma vontade europeia de integrar o nosso país", considera Yermolenko. "Como é que Leyen vai acabar com os oligarcas? Como é que um país com fraquíssimo parlamentarismo vai integrar a UE?", contrapõe o jornalista russo.