Dezenas de crianças doentes, várias das quais com cancro, estão a ser tratadas nas caves de hospitais ucranianos em condições extremamente precárias. Se nada for feito, "as crianças vão morrer".
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Pais, pessoal médico e voluntários fazem o que podem, mas o acesso a tratamentos é limitado e os medicamentos e a comida são cada vez mais escassos. Nas unidades pediátricas ucranianas, o desespero é grande e até já se fazem transfusões de sangue diretas de pais para filhos.
Desde que começaram os bombardeamentos russos que as alas pediátricas dos hospitais ucranianos começaram a ser transferidas para o subsolo e para as caves dos edifícios. São espaços sem condições mínimas. Os responsáveis alertam que a situação é preocupante e há várias crianças com cancro em risco de ficarem sem tratamento, sem comida e sem medicamentos.
"Não sabemos quanto mais tempo temos"
Segundo o jornal The Guardian, no hospital pediátrico de Chernihiv, a 100 quilómetros de Kiev, há 11 crianças internadas com cancro. Têm entre dois e 15 anos. "Não sabemos quanto mais tempo temos", confessa Serhi Zosimenko, um voluntário. "Não temos mais recursos."
Os hospitais polacos e eslovacos já se prontificaram para acolher as crianças doentes, mas não há maneira de as levar lá. A cidade está completamente cercada e as estradas estão minadas.
"Se isto continuar os nossos pacientes vão morrer"
No maior hospital pediátrico da Ucrânia, o Okhmatdyt, em Kiev, o cenário não é muito diferente. O chão da cave está coberto de colchões finos, cobertores e almofadas. Enquanto à superfície se ouvem bombas, no subsolo os pais tentam acalmar os filhos.
O acesso a tratamentos tem sido condicionado e as crianças com cancro apenas podem fazer quimioterapia limitada. "Se isto continuar, os nossos pacientes vão morrer", garante Lesia Lysytsia, médica responsável.
As carências e fragilidades são tão grandes que os médicos já começaram a fazer transfusões diretas de pais para filhos, refere a responsável de uma organização de apoio a crianças com cancro à estação NBC.
Armazenar comida e medicamentos
No sábado, um projétil caiu a 200 metros do hospital de Chernihiv. Serhi passou todo o dia a reforçar o abrigo e a armazenar comida de supermercados e medicamentos das farmácias próximas. A comunidade ajuda no que pode mas já há escassez de vários fármacos, principalmente analgésicos. "As pessoas com cancro necessitam de analgésicos; temos um problema com morfina e outras drogas essenciais", lamenta.
O pessoal do hospital de Chernihiv apenas dorme duas ou três horas por noite por causa dos bombardeamentos. Mesmo cansados têm procurado dar algumas condições à cave. Cobriram as paredes de gesso, puseram um soalho improvisado, instalaram luzes e trouxeram camas.
Antes da guerra a associação de Serhi limitava-se a angariar donativos. Agora, percorrem a cidade em busca de comida e medicamentos. Ninguém lhe tem cobrado por medicamentos e bens essenciais. "Só me dizem para tomar conta das crianças", conta.
Damos as nossas vidas, mas não sacrificamos a vida destas crianças
O voluntário apela à ajuda internacional para retirar as crianças da zona de guerra. Enquanto isso não acontece, prepara-se para, se necessário, lutar. Serhi trouxe uma espingarda e juntamente com os pais das outras crianças criou uma unidade de proteção informal. "Estamos dispostos a dar as nossas próprias vidas mas não iremos sacrificar as vidas destas crianças", promete.
A maioria das crianças que estava internada no hospital de Okhmatdyt já saiu de Kiev. Porém, as que inspiram mais cuidados não podem ser transferidas. Muitas estão em suporte de vida e outras necessitam de sessões de quimioterapia regulares.
"O mais triste é que quando a sirene toca, temos todos, crianças e pais, de ir para a cave", conta o cirugião Vitaly Demidov, à revista Time. E as crianças ligadas a suporte de oxigénio necessitam de que um elemento do staff vá sempre com elas a operar um ventilador manual.
Uma imagem publicada pelo próprio cirurgião, com um bebé ao colo e com uma caçadeira na mão, tornou-se famosa. Na legenda, Demidov escreveu: "Esta noite foi quente. Há crianças muito doentes no hospital. Até agora todas estão bem, mas não sei sé é por muito mais tempo (...) De pé até ao fim!!!".
Transporte até Lviv e depois até à Polónia
Em Kiev, os responsáveis pelo hospital pediátrico tentam assegurar transportes de doentes até Lviv, no oeste do país, onde há mais recursos e a situação parece ser mais estável. A ideia é conseguir levá-los até à Polónia. O problema é que, à medida que milhares de refugiados se deslocam para oeste para tentar fugir da guerra, há cada vez menos camas disponíveis naquela cidade.
Julia Nogovitsyna, responsável de uma organização humanitária de apoio a crianças com cancro, diz que a tensão na fronteira chega a ser tanta que os refugiados atiram pedras a todos os carros que passam, incluindo os que levam crianças doentes porque acham que lhes estão a passar à frente.
Na segunda feira, 14 crianças foram de autocarro de Kiev até Lviv. A viagem, que normalmente duraria três ou quatro horas, demorou cerca de 13 horas por causa dos desvios e postos de controle. Atrás do autocarro seguia um carro com um casal e uma menina de apenas um mês que nasceu com leucemia. "Não sei como vai sobreviver a isto", desesperava Julia. Em Lviv, tinha à espera um outro autocarro com mais 20 crianças. O destino final se tudo correr bem será a Polónia.
"Vamos ficar até ao fim"
No centro pediátrico de Lviv, joga-se um jogo para distrair as crianças. Sempre que toca a sirene, as crianças têm de ir o mais depressa possível para a "masmorra". A sirene é a de ataque aéreo e a "masmorra" é o abrigo anti bomba. As crianças mais novas acham piada mas as com mais de 10 anos já não se deixam enganar e ficam muito assustadas. Algumas já têm de ser acompanhadas por psicólogos. "É traumatizante", garante Roman Kizyma, um dos responsáveis pela unidade de saúde no oeste da Ucrânia.
Kizyma promete que ele e o staff vão ficar até ao último momento. "Se sairmos, muitas das crianças que temos a nosso cargo, vão morrer", explica. Em Kiev, Lysytsia afina pelo mesmo diapasão: "Vamos fazer tudo o que for necessário para os nossos doentes. E vamos ficar até ao fim".